Gazeta de Holanda

 

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Texto-Fonte:

 Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.

 

Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

N.° 1

 1.º DE NOVEMBRO DE 1886.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Um doutor da mula ruça, 

Caolho, coxo e maneta,

É o homem que se embuça

No papel desta gazeta.

 

Gazeta que, se tivesse

Outra forma, outro formato,

Pode ser que merecesse

Vir com melhor aparato.

 

Mas é modesta, não passa

De uma folha de parreira,

Que dá uva, que dá passa,

Que dá vinho e borracheira.

 

Traz programa definido,

Para entrar no grande prélio;

Nem bemol, nem sustenido,

Nem Caim, nem Marco-Aurélio.

 

Não traz idéias modernas,

Nem antigas; não traz nada.

Traz as suas duas pernas,

Uma sã, outra quebrada.

 

E vem, como é de ciência,

Entre muletas segura,

A muleta da inocência,

E a muleta da loucura.

 

Se uma não pega, outra pega,

E fica o corpo amparado;

Se para um lado escorrega,

Fica-lhe sempre outro lado.

 

De modo que, quanto diga,

Seja ou não o que a lei manda,

Há de achar entrada amiga

Esta Gazeta de Holanda.

 

Que traga idéias a folha

Liberal que se anuncia,

Que as espalhe, que as escolha,

Como a Reforma fazia.

 

Vá que seja — posto seja

Tarefa das mais reversas,

Fazer uma só igreja,

De tantas seitas diversas.

 

A prova é que, ainda agora,

Já pronta a bagagem sua,

Somente esperando a hora

De sair a folha à rua,

 

Feito um capítulo apenas,

De tão diversos capítulos,

E, contando boas penas,

Já traz a folha dois títulos.

 

Voz da Nação, ou — Gazeta

Nacional; só falta a escolha.

Já principia a marreta,

Antes de sair a folha.

 

Eu cá, perfeita unidade.

Ora aprovo, ora contesto,

Sem que haja necessidade

De ouvir protesto e protesto...

 

Exemplo: ao ler que se trata

De fazer um edifício

Para o júri: — colunata,

Vasto e grego frontispício,

 

E que esta idéia bizarra

Nasceu mesmo agora, agora,

Quando foi ali à barra

Uma distinta senhora;

 

Quando a afluência de gente

Era tal, que o magistrado

Teve de ir incontinente

Pedir sabão emprestado;

 

Comigo disse: — Bem feito

Que a Joaninha expirasse

De uma moléstia do peito,

E que a Eduarda cegasse.

 

Só assim tínhamos prédio

Para um tribunal sem nada;

Não foi morte, foi remédio;

Foi vida, não foi pancada.

 

Pangloss, o doutor profundo,

Mostra que há grande harmonia

Entre as cousas deste mundo,

Entre um dia e outro dia;

 

Que os narizes foram dados

Para os óculos; portanto,

Trazem óculos pousados...

Pangloss é o meu padre-santo.

 

Logo, se uma e outra escrava

Brigaram sem sentimento,

A razão de ação tão brava

Foi termos um monumento.

 

Neste ponto o ponto pingo,

E despeço-me no ponto

Em que cada novo pingo,

Já não é ponto, é posponto.

 

 

 

N.° 2

 5 DE NOVEMBRO DE 1886.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Muito custa uma notícia!

Que ofício! E nada aparece,

Que canseira e que perícia!

Que andar desde que amanhece!

 

E tu, leitor sem entranhas,

Exiges mais, e não vês

Como perdemos as banhas

Em te dar tudo o que lês.

 

És assim como um janota

De maneiras superfinas,

Que não sabe o preço à bota

Com que cativa as meninas.

 

 

Agora mesmo, buscando

Saber de associação

Que se deu ao venerando

Ofício de proteção

 

Aos animais — não sabia

Onde achasse os documentos

Dessa obra de simpatia,

Para transmiti-la aos ventos.

 

Achei quatrocentas atas

De reuniões semanais,

Ofícios, notas e datas,

Tudo espalhado em jornais.

 

Mas das ações praticadas

Em favor da bicharia,

E das vitórias ganhadas,

Nada disso conhecia.

 

Então lembrei-me de um burro,

Sujeito de algum valor,

Nem grosseiro nem casmurro,

Menos burro que o senhor.

 

E pensei: “Naturalmente

Traz toda a historia sabida;

É burro, há de ter presente

A proteção recebida”

 

Lá fui. O animal estava

Em pé, com os olhos no chão,

Tinha um ar de quem cismava

Cousas de ponderação.

 

Que cousas, porém, que assunto

Tão grave, tão demorado,

Ocupava o seu bestunto,

Nada lhe foi perguntado.

 

Talvez, ao ver-se assim magro,

Cativo como um nagô,

Pensasse no velho onagro,

Que foi seu décimo avô.

 

Entrei, dizendo-lhe a causa

Daquela minha visita;

Ele, depois de uma pausa,

Como gente que medita,

 

Respondeu-me: — Em frases toscas

Mas verdadeiras, direi,

Enquanto sacudo as moscas,

Tudo o que sobre isto sei.

 

Juro-te que a sociedade,

Contra os nossos sofrimentos,

Tem obras de caridade,

Tem leis, tem regulamentos.

 

Tem um asilo, obra sua,

Belo, forte, amplo e capaz;

Já se não morre na rua,

Dá-se ali velhice e paz.

 

Gozam dessa benta esmola,

Em seus quartos separados,

Mais de uma onça espanhola,

E muitos gatos-pingados.

 

Todos os galos na testa

Acham lá milho e afeição;

Lá vive tudo o que resta

Da burra de Balaão.

 

Mora ali a vaca fria.

E mais a cabra Amaltéia,

Única e só companhia

Do pobre leão de Neméia.

 

Não posso fazer elipse

Dos bichos caretas, nem

Da besta do Apocalipse,

Que ali seu abrigo têm.

 

E o cisne de Leda, e um bode

Expiatório, e o cavalo

De Tróia, escapar não pode;

Mas há outros que inda calo.

 

Peguei no papel, e a lápis

Escrevi tudo, e escrevi

Mais o nome do boi Ápis,

Que ele inda me disse ali.

 

E perguntei: — Meu amigo,

Por que é que a tantos amaina

O tempo, naquele abrigo,

E você anda na faina?

 

Ele, burro circunspecto,

Asno de boa feição,

Tirou de fino intelecto

Esta profunda razão:

 

— Se eu estivesse ali junto

Com outros da minha banda,

Você não tinha este assunto

Para a “Gazeta de Holanda”.

 

Vá consolado: que importa

Que eu viva cá fora ou lá?

Qualquer porta há de ser porta,

Para sair; vá, vá, vá.

 

E enquanto assim me dizia

frases que chamava toscas,

Chagas de pancadaria

Iam convidando as moscas.

 

Lá o deixei como estava,

Em pé, com os olhos no chão,

Parecendo que cismava

Cousas de ponderação.

 

 

 

N3

 12 DE NOVEMBRO DE 1886.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Aqui está, em folhas várias,

Uma cousa que se presta

A notas e luminárias.

Aqui vai a cousa, é esta:

 

— Na rua Larga se aluga,

Em bom estado, uma beca. —

Parece uma simples nuga,

E é mais que uma biblioteca.

 

Eis aqui o que eu diria:

Há nesta beca alugada

Uma idéia que devia,

Há muito andar publicada.

 

Primeiramente, repare

Que esta beca não se vende

Por preço barato ou caro;

É que, alugada, mais rende.

 

Comprá-la, era possuí-la;

Alugá-la, é só trazê-la,

Usá-la e restituí-la,

Sem rompê-la ou descosê-la.

 

Não haverá neste caso

Um sintoma? Não parece

Que a beca tomada a prazo

Uma lição oferece?

 

Que, sem correr Seca e Meca,

Muita gente delicada,

Assim como traz a beca,

Traz a ciência alugada?

 

Que, sendo esta leve e pouca,

Apenas meia tigela

Não chega a entornar da boca,

E pouco pedem por ela?

 

Que, inda mesmo sendo um quarto

De tal tigela, e não meia,

Parece falar de fato

Quem fala de boca cheia?

 

E que esse pouco, bastando

A que o locatário almoce,

É tolice andar estando

Ciência de sobreposse?

 

Nada sei; mas ofereço

A toda a pessoa séria

Este problema de preço

E passo a outra matéria.

 

Escreve um correspondente

Cholera-Morbus chamado:

“Conto que proximamente,

Malvólio, estou ao teu lado.

 

“Aqui nesta Buenos-Aires,

Terra de belas meninas...

Que salero e que donaires!

Que formosas Argentinas!

 

“Aqui, por mais que me esbofe,

Levo uma vida vadia;

Esperava um rega-bofe

E vou de pança vazia.

 

“Quando mato uma pessoa,

Surge-me logo uma junta,

Que a declara viva e boa,

Por mais que a deixo defunta.

 

“Negam-me tudo; o meu ato,

O nome, e até a existência;

Chamam-me simples boato

Sem razão nem consistência,

 

“Aborrecido com isto,

Determinei ir-me embora

Por esse mundo de Cristo;

Estou aqui, estou lá fora.

 

“Aí me vou, caro mio,

Só não sei de que maneira,

Se diretamente ao Rio,

Se atravessando a fronteira.

 

“Ir por água é arriscado

A dar com o nariz na porta;

Se achar o porto trancado,

Eu fico de cara torta.

 

“Enfim, veremos... Espero

Que, de um modo ou de outro modo,

Lá, entre; e aqui te assevero

Que com pouco me acomodo.

 

“Saudade, tenho saudade

De outr'ora. Há mais de trinta anos

Que andei por essa cidade

Com grandes passos ufanos.

 

“Mudou tudo? Existe ainda

O teatro Provisório?

Onde está Lagrua, a linda

Que teve um lapso amatório?

 

“O gordo Tatti? O magano

Ferrari? A Charton divina?

Vive ainda o João Caetano?

Vive ainda a Ludovina?

 

“A Loja do Paula Brito

Mudou de dono ou de praça?

Paranhos, grave e bonito,

Vive ainda? Vive o Graça?

 

“Mora ainda no Rocio

Muita família? O teatro

Tem inda o mesmo feitio?

São ainda os mesmos quatro?

 

“Publica-se inda o elegante

Mercantil? Que faz? Que escreve

Maneco? e o Muzzio? e o brilhante

Alencar de estilo leve?

 

“Vou vê-los todos, e juro

Em honra aos dias passados,

Que ao meu golpe áspero e duro

Serão poupados, poupados...”

 

 

 

N.° 4

17 DE NOVEMBRO DE 1886.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Que será do novo banco?

Interroga toda a gente;

Respondem uns que um barranco,

Outros dizem que uma enchente.

 

Certo é que andaram milhares

De contos, contos e contos,

Uns por terra, outros por mares

Contos de todos os pontos.

 

Caíam como sardinhas,

Pulavam como baleias;

Aí belas ambições minhas!

Ai sonho, que me incendeias!

 

E o Holman, o forte e ledo

Inglês abrasileirado,

Contemplava o Figueiredo,

Que olhava, grave e barbado.

 

Supunha que muita gente

Viesse; mas gente tanta

Não cuidavam certamente...

Obra abençoada e santa!

 

Da empresa, ora começada,

Há quem diga maravilhas;

Muita idéia cogitada;

Ouro a granel, ouro em pilhas.

 

Circulação recolhida,

Câmbio a vinte e seis ou sete,

Mudança da antiga vida,

Outra cara, outro topete.

 

Ai, sonho! ai, diva quimera!

Pudesse eu entrar na dança!

Ai viçosa primavera!

Ai verde flor da esperança!

 

Nem eu, nem o meu compadre

Eusébio Vaz Quintanilha,

Que, por mais que corra e ladre,

Nenhum grande emprego pilha.

 

Que, para matar a fome,

Vem matá-la em minha casa,

Sem poder dizer que come,

Mas que destrói, mata, arrasa.

 

Pobre Quintanilha! Um anjo!

Coitado! Afinal parece

Que lá teve algum arranjo

Que lhe dá certo interesse.

 

Há já dias que o não via;

Onde iria o desgraçado?

Quem sabe se morreria,

Faminto, desesperado?

 

Eis que ontem, quando passava

Pela rua da Quitanda,

E nos negócios cismava

Desta Gazeta de Holanda,

 

Lá no outro lado da rua

Uma figurinha pára;

Trazia a cabeça nua,

Bacia, opa e uma vara.

 

Era o pobre... Deu comigo

E veio, em quatro passadas,

Ao seu delicado amigo

Apertar as mãos pasmadas.

 

— “És andador de irmandade?

Aprovo os teus sentimentos

De devoção, de piedade...

Toma um níquel de duzentos”.

 

— “Não, Malvólio, não, não ando

Como um andador professo...”

— “Andador de contrabando?”

— “Também não; ouve, eu t’o peço.

 

“Esta opa, esta bacia

Alugo a alguma Irmandade:

Dou cinco mil réis por dia,

E corro toda a cidade.

 

“Varia o lucro, segundo

Dou mais ou menos às pernas;

Não escandalizo o mundo

E mato as fomes eternas.

 

“Rende-me oito ou nove, e há dias

De dez mil réis, dez e tanto.

Crês? Já faço economias,

Já deito algum cobre ao canto.

 

“É este o meu banco. O fundo

É variável, mas certo;

Deus dá banco a todo o mundo;

Uns vão longe, outros vão perto.

 

“Eu cá não ando com listas

De ações, nem faço rateio;

Todos são meus acionistas,

Gordo ou magro, lindo ou feio.

 

“Que um só vintém esmolado

Vale no céu muitos contos;

E há muito vintém cobrado...

Vinténs de todos os pontos!”

 

 

 

N.° 5

21 DE NOVEMBRO DE 1886.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Com franqueza, esta Bulgária

Vai-me esgotando a paciência;

Lembra a ilha Baratária,

Onde, após uma audiência,

 

Sancho, que naquele dia

Começara a governá-la,

Foi, com muita cortesia,

Levado a uma grande sala.

 

Tinha uma fome de rato

O governador recente,

E viu prato, e prato, e prato,

Prato de atolar o dente.

 

Quanto manjar, quanto molho,

Não direi, por mais que diga;

Só a vista enchia o olho...

Restava encher a barriga.

 

Mas tão depressa acudia

Algum servo respeitoso,

Trazendo-lhe uma iguaria

De cheirinho apetitoso,

 

Um doutor, que se postara

Ao lado, sem mais demora

Fazia um gesto co’a vara,

E ia-se a iguaria embora.

 

Afinal, pergunta o Sancho

Que era aquela caçoada.

Responde o doutor, mui ancho,

Que nada, não era nada.

 

Que, como ele tinha a cargo

A sua saúde e vida,

Cabia-lhe pôr embargo

A uma ou outra comida.

 

— “Bem, então dê-me essas belas,

Maravilhosas perdizes”.

— “Livre-o Deus de tocar nelas,

Nem de chegar-lhe os narizes”.

 

— “Mas, aquele gordo coelho

Espero que me não negue”.

— “Senhor, o melhor conselho

É que nem sequer lhe pegue”.

 

— “Naquele prato travesso

Cuido que há olha-podrida”.

— “Não coma, por Deus lh'o peço!

Aquilo espatifa a vida.

 

“Deixe Vossa Senhoria

A cônegos e a reitores

Essa péssima iguaria

Que tanto estraga os humores”.

 

E o pobre Sancho com fome,

Por mais que lhe dê na gana,

Tudo pede e nada come,

Até que se desengana.

 

Assim anda a tal Bulgária;

Elege, mas não elege,

Pois, como na Baratária,

Há um doutor que a protege.

 

“Este príncipe!” — “Não presta;

Faz-lhe mal aos intestinos”.

— “Est'outro?” — “Escolha funesta”.

— “Aquel'outro?” — “Um valdevinos.

 

“Para os seus humores basta

Este da Mingrélia; é moço,

Boa cara e boa casta;

Demais, pertence ao colosso”.

 

E a Bulgária, se há de os braços

Estender e recebê-lo,

Fazendo assim com abraços,

Em vez de a murros fazê-lo,

 

Timeos Danaos, et dona

Ferentes, pensa consigo;

E com ar de valentona,

Recusa o presente amigo.

 

Bulgária dos meus pecados,

Imita o meu pobre Sancho,

Que, vendo os pratos negados,

Agarrou um pão a gancho.

 

Um pão seco e frescas uvas,

Acaba essas longas bodas.

Já tens véu, grinalda e luvas,

Escolhe uma vez por todas.

 

E, tomando a liberdade

De te chamar D. Amélia

(Ó rima! Ó necessidade!)

Bulgária, escolhe o Mingrélia!

 

 

 

N.º 6

28 DE NOVEMBRO DE 1886.

 

Voilà ce que l’on dit moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

“Tu és Cólera, e sobre esta

Doença amiga edifico

A minha igreja, e uma sesta

Perpétua, em ficando rico”.

 

Assim me dizia o Bento

Da Silva Luz, boticário,

Inventor de um cozimento,

Inócuo e pecuniário.

 

E, vendo que eu o escutara,

Cheio de alegria e riso,

Como alguém que se prepara

A ter igual paraíso,

 

Quis saber qual fosse a causa

Daquela expressão ridente;

Eu, depois de certa pausa,

Disse-lhe naturalmente:

 

— “Quando cogito em que a peste

Pode entrar por nossa casa,

Cuido no favor celeste

Que trará pendente na asa.

 

Deu ela entre alienados

De Buenos-Aires, matando

Metade dos atacados,

E nova gente atacando.

 

Cada telegrama conta

Dois, três, cinco, oito, dez loucos,

Que ficam de mala pronta

E vão deixando isto aos poucos.

 

Não tarda que o derradeiro

Hóspede saia do asilo

E fique o edifício inteiro

Despovoado e tranqüilo.

 

E calcule agora a soma

De palácios encantados,

Feitos de nácar e goma,

Telhados e destelhados;

 

Calcule os pássaros feios

De asas longas, longas pernas,

Que enchem por todos os meios

As frias noites eternas;

 

Calcule as meias idéias

Feitas de meias lembranças,

E a meia luz das candeias,

E a meia flor de esperanças;

 

E as gargalhadas sem boca,

Ouvidas perpetuamente,

Ora claras, ora roucas,

E as conversações sem gente.

 

Farrapos de consciência,

Cozidos pelo delírio,

E uma enorme concorrência

De patuscada e martírio;

 

Calcule agora essa vida

De doidos enclausurados,

De repente interrompida,

E os corpos amortalhados.

 

Nem sempre a peste é moléstia,

Sacramentos e ataúde;

Aos doidos vale uma réstia

De inesperada saúde.

 

Por isso é que, quando penso

Naquele monstro terrível,

Acho um beneficio imenso,

Que o torna bom e aprazível.

 

E digo: Oh! abençoado

Destino que tal prescreve!

Que haja ao pé do alienado

A epidemia que o leve!”

 

 

 

N.° 7

6 DE DEZEMBRO DE 1886.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

A lei darwínica é certa

Inda em acontecimentos...

Não fiquem de boca aberta,

Vão vê-lo em poucos momentos.

 

Há nelas a mesma luta

Pela vida, e de tal arte

A crua lei se executa,

Que é a mesma em toda a parte.

 

Há seleção, persistência

Do mais capaz ou mais forte,

Que continua a existência,

E os outros baixam à morte.

 

Demonstro: — O famoso caso

Da escola e pancadaria,

Caso que pôs tudo raso,

Tudo, até a epidemia.

 

Tal foi ele que, tomando

Todo ou quase todo o espaço,

Foi de um trago devorando

Quanto lhe embargava o passo.

 

Escapou a Cantagalo,

Por trazer comprido bico,

Unha capaz de matá-lo,

Peito largo e sangue rico.

 

Mas, por um só que resiste,

Quantos passaram calados

Na penumbra vaga e triste

Dos seres mal conformados!

 

Cito dois — um pequenino,

Um telegrama celeste,

Oficial e argentino

Sobre os destroços da peste.

 

Dava os óbitos do dia,

De modo tão encoberto,

Que o duvidoso morria

E só escapava o certo.

 

— “Rua tal: um duvidoso,

Outro duvidoso ao lado...”

Pois, com ser tão engenhoso,

Foi lido e não foi guardado.

 

Segundo caso: o de Arantes,

Arantes, a testemunha,

Que os juízes implicantes

Cuidam de pegar à unha.

 

Porquanto há necessidade

De ouvir-lhe a palavra de ouro,

Para saber a verdade

Do que houve no Matadouro.

 

Seja pró ou seja contra

Essa testemunha rara,

Onde é, onde é que se encontra?

Onde vive? Onde é que pára?

 

Mandou-se às partes remotas

Da cidade, e logo ao centro;

Foram ao fundo das botas

E não o acharam lá dentro.

 

Em Minas? Vá precatório,

Rápido, para intimá-lo ...

Esforço inútil e inglório!

Voltou sem lograr achá-lo.

 

Não sendo encontrado em Minas

Nem pelas matas cerradas,

Foram às ilhas Malvinas,

Ao Congo e ao reino das Fadas.

 

E bradaram-lhe: — “Ó Arantes,

Chamado como quem sabe

O nome aos bois pleiteantes,

E o mais que no caso cabe;

 

“Arantes, onde respiras?

Onde estás? Onde te  escondes?

Na trama das casimiras?

Chamo-te e não me respondes.

 

“Talvez no centro da Arábia,

Talvez na rua da Ajuda,

Talvez estudando a Fábia,

Talvez adorando a Buda.

 

“Donde quer que estejas, corre,

Acode ao nosso chamado:

Vem, que, se não corres, morre 

O processo começado”.

 

E passou esse episódio

Sem fazer maior barulho

Do que as saúdes de um bródio

Na Gávea ou no Pedregulho.

 

Porque nos próprios eventos

A lei darwínica é certa.

Provei-o em poucos momentos,

Não fiquem de boca aberta.

 

 

 

N. 8

14 DE DEZEMBRO DE 1886.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande

 

E disse o Diabo: — “Fala,

Que queres ser nesta vida?

Antonino ou Caracala?

Capucho ou jardins de Armida?

 

“Escolhe, e verás, Malvólio,

Tudo o que quiseres; pede

Um sólio, e terás um sólio,

Pede um culto, e és Mafamede”.

 

E eu, respondendo-lhe, disse

Que nem tronos nem altares;

Que, na minha mandriice,

Tinha sonhos singulares.

 

Ou antes, um sonho apenas,

Um só desejo, um só, único,

Mais velho que a velha Atenas,

Mais velho que um vintém púnico.

 

Não era ter a coroa

Do Egito nem da Bulgária,

Nem ver as moças de Goa,

Nem ter os beijos da Icária,

 

Nem dormir o dia inteiro

Em tapetes persianos,

Sentindo o vento fagueiro

De numerosos abanos.

 

Digo abanos meneados

Por muitas damas formosas,

Feitos de fios delgados

De palma, e plumas, e rosas.

 

Nem comer em pratos de ouro

Figos secos da Turquia,

Acompanhados do louro

Néctar que há na Andaluzia.

 

Nem possuir as estrelas

Que são tão minhas amigas,

Para um dia convertê-las

Em meias-dobras antigas.

 

Pois tudo isso, e o mais que pode

Entrar no mesmo cortejo

Duvido que se acomode

Ao meu íntimo desejo.

 

Sabes tu o que eu quisera?

Quisera ser cartomante,

Dizer que espere ao que espera,

E dizer que ame ao amante.

 

Saber de cousas perdidas,

Saber de cousas futuras,

De verdades não sabidas,

De verdades não maduras.

 

Se uma senhora é amada,

Saber de cousas futuras,

De verdades não sabidas,

De verdades não maduras.

 

Se uma senhora é amada,

Ou se há lá na costa mouras;

Se a costureira — casada ­—

Chega a depor as tesouras.

 

Quem é certo moço que anda

De chapéu branco e luneta,

E algumas vezes lhe manda

Lembranças por uma preta.

 

Se a mulher de um diplomata

Vive enredando as pessoas...

Se há de esperar certa data...

Se as filhas hão de ser boas...

 

Onde pára uma pulseira,

Um recibo, um cachorrinho...

Se a neta da lavadeira

Bifou algum colarinho...

 

Se há de morrer de um inchaço

Que traz na perna direita...

Ou se a luxação de um braço

Pode deixá-la imperfeita...

 

Tudo isso, e o mais que não cabe

Em verso rápido e breve,

E que a cartomante sabe,

Sabe, conta, e não escreve.

 

É o meu desejo. E tenho

Que, se essa cousa me ensinas,

Serei, com o meu engenho,

O doutor destas meninas,

 

Que a nós outros coube em sorte

Política e loteria,

Cousas que têm, como a morte,

Mistério e melancolia.

 

Mas que hão de fazer as damas

Com a alma incendiada

Das mesmas secretas flamas

E ao mesmo abismo inclinada?

 

Procuram timidazinhas

Aquelas claras vivendas

E crescem as adivinhas,

Não dão para as encomendas.

 

Pois se tu, Diabo amigo,

Me pões capelo de mestre,

Juro-te que dás comigo

No paraíso terrestre.

 

Cá virão as Evas novas,

Inquietas, desordenadas,

Pedir-me, com ou sem provas,

As verdades mascaradas.

 

E olha que farei no ofício

Notáveis melhoramentos,

Tapetes, largo edifício,

E o preço — mil e quinhentos.

 

 

 

N.° 9

21 DE DEZEMBRO DE 1886.

 

Voilà ce que l'on dit de moi 

Dans la Gazette de Hollande.

 

À Carmen Silva, à rainha

Da Rumânia, à delicada,

Egrégia colega minha,

Pelas musas laureada,

 

Pobre trovador do Rio,

Cantor da pálida lua,

Esta breve carta envio,

E aguardo a resposta sua.

 

Note bem que lhe não falo

Das suas lindas novelas,

Nem do plácido regalo

Que nos dá com todas elas.

 

Não, augusta e bela moça,

Não é prosa nem poesia

O meu assunto ... Ouça, ouça,

Verá que é sensaboria.

 

Cá se soube que um partido,

Que há muito não dava cacho,

Após combate renhido,

Tomou ao outro o penacho.

 

Fez-se isso eleitoralmente;

A gente que não queria

O partido então vigente,

Mudou de cenografia.

 

Se fez bem ou mal, lá isso

É com ela; a culpa inteira

Pertence-lhe de o feitiço

Virar contra a feiticeira.

 

Mas, como aqui neste canto,

Não há tal eleitorado,

Que faça nunca outro tanto,

E pense em cousas do Estado;

 

E também porque isto, às vezes,

Está em qualquer cousa (adágio,

Que herdamos dos portugueses,

E tem o nosso sufrágio),

 

Lembrou-me que poderia

Obter, por seu intermédio,

Para uma tal embolia

O apropriado remédio.

 

Serão pastilhas? xarope?

Pílulas de qualquer cousa?

Um cozimento de hissope?

Fricções de madeira e lousa?

 

Seja isto ou seja aquilo,

Peço a Vossa Majestade

Uma amostra, um frasco, um quilo

Para ensaiar na cidade.

 

Porque, como ora se trata

De uma operação sabida,

Que a gente que se maltrata

Torna a pôr amada e unida,

 

Operação que dissolve

Os grupos mais separados,

E rapidamente absolve

Todos os ódios passados;

 

Quisera, logo que esteja

Toda a obra recomposta,

E esta liberal igreja

De novo aos fiéis exposta,

 

Quisera ver se, tomando

A droga rumaica um dia,

Chegaríamos ao mando

Pela mesma e larga via.

 

De outro modo ficaremos

Nestas náuticas singelas

De largar o leme e os remos

E abrir à fortuna as velas.

 

Eia, pois, augusta musa,

Mande-me o remédio santo,

E não vos concedo escusa;

Quero tirar o quebranto.

 

Quero ver se, finalmente,

Depois de tão larga espera,

A nossa eleitoral gente

É gente, não é quimera.

 

Para que depois se queixe

De si e das culpas suas,

E por uma vez se deixe

De murmurar pelas ruas.

 

Vede, flor das maravilhas,

Como esta alma pede e roga:

Mandai-me as vossas pastilhas,

Pílulas ou qualquer droga.

 

 

 

N.º 10

10 DE JANEIRO DE 1887.

 

Voilà ce que l’on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

            

Depois de férias tão longas;

Tão docemente cumpridas,

Ó musa, minhas candongas,

Voltemos às nossas lidas.

 

Assim faz a Pátria, às vezes,  

E é certo que não estoura;  

Descansa um mês ou dois meses

O nosso C. B. de Moura.

 

E a Pátria, meia enfadada

Daquelas extensas férias,

Volta mais fortificada

Aos combates e às pilhérias.

 

Eia, pois, minha gorducha,

Vê que recomeça a aurora,

Puxa daqui, puxa, puxa,

Vamos trabalhar lá fora.

 

E antes de tudo, inclinando

O gesto a todos os lados,

Vai a todos desejando

Plácidos dias folgados.

 

Desejarás uma boa

Vereança aos cariocas,

Que se não esgote à toa,

Em longas brigas e mocas;

 

Que eleja pacatamente,

Sem atos tumultuários,

O seu vice-presidente

E os restantes comissários.

 

Pouco calor, pouca chuva,

Nenhuma peste que assole,

Algum vinho feito de uva,

E menos gente que amole.

 

Grandes bailes mascarados

E passeatas nas ruas, 

Câmaras de deputados

Sem as discussões tão cruas.

 

Boatos, sobre boatos,

De modo que quem passeie

Por esses bonds ingratos 

Tenha cousa que recreie.

 

E mais que tudo, meu anjo;

Anjo meu do meu sacrário,

Desejo um bonito arranjo

Ao nosso estafado erário.

 

Não sei se leste a mensagem

De Cleveland, um documento

De americana homenagem

Lá, para o seu parlamento.

 

Pois conta-se aí (por esta

Luz do céu minh'alma jura

Que não é peta funesta,

Mas pura verdade, pura);

 

Conta-se que a renda é tanta

Que urge cortar-lhe os babados,

Que é demasiada a manta

Para tão vastos Estados.

 

Que, se vão nessa carreira,

Pagam aqueles senhores

Em breve a dívida inteira, 

E ficarão sem credores.

 

Depois vem maior excesso

De renda, e será tamanho

Que não haverá processo

De o dar a  melhor amanho,

 

Porque ou fica no tesouro,

Inútil, mudo e parado,

Ou saem carradas de ouro

Para os delírios do Estado.

 

Ora bem, estes fenômenos

Dados como desastrosos,

Terríveis  paralipômenos

De grandes livros lustrosos,

 

Hás de pedi-los, amiga,

Mas  pedi-los de maneira

Que uma segunda barriga

Coma sem dor da primeira.

 

Es decir, que aquela caixa

Que ronca de tanta altura,

Se quiser ficar mais baixa

Tem receita mais segura:

 

Pegue em si, tire metade

E verá como lhe pego,

Pego-lhe com ansiedade,

Com ansiedade de cego.

 

E digo ao Tesouro nosso

— Amigo, aqui tens dinheiro;

Precisas deles, aqui posso

Dá-lo às tuas mãos inteiro.

 

Vê tu que singular obra

A deste mundo peralta,

Geme um — pelo que lhe sobra,

E outro — pelo que lhe falta.

 

 

 

N.º 11

20 DE JANEIRO DE 1887

 

Voilà ce que l’on dit moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Cousas que cá nos trouxeram

De outros remotos lugares,

Tão facilmente se deram

Com a terra e com os ares,

 

Que foram logo mui nossas 

Como é nosso o Corcovado,

Como são nossas as roças,  

Como é nosso o bom-bocado.

 

Dizem até que, não tendo

Firme a personalidade, 

Vamos tudo recebendo   

Alto e malo, na verdade.

 

Que é obra daquela musa

Da imitação, que nos guia,

E muita vez nos recusa

Toda a original porfia.

 

Ao que eu contesto, porquanto

A tudo damos um cunho

Local, nosso; e a cada canto

Acho disso testemunho.

 

Já não falo do quiosque,

Onde um rapagão barbado

Vive... não digo num bosque,

Que é consoante forçado,

 

Mas no meio de um enxame

(É menos mau) de cigarros,

Fósforos, não sei se arame;

Parati para os pigarros;

 

Café, charutos, bilhetes

Do Pará, das Alagoas,

Verdadeiros diabretes,

E outras muitas cousas boas.

 

Mas a polca? A polca veio

De longas terras estranhas,

Galgando o que achou permeio,

Mares, cidades, montanhas.

 

Aqui ficou, aqui mora;

Mas de feições tão mudadas,

Que até discute ou memora

Cousas velhas e intrincadas.

 

Pusemos-lhe a melhor graça,

No título, que é dengoso,

requebro, já chalaça,

Ou lépido ou langoroso.

 

Vem a polca: Tire as patas,   

Nhonhô! — Vem a polca: Ó gentes!

Outra é: — Bife com  batatas!   

Outra: Que bonitos dentes!

 

—Ai, não me pegue, que morro!

— Nhonhô, seja menos seco!

— Você me adora? — Olhe, eu corro!

— Que graça! — Caia no beco!

 

E como se não bastara

Isto, já de casa, veio

Cousa muito mais que rara,

Cousa nova e de recreio.

 

Veio a polca de pergunta

Sobre qualquer cousa posta

Impressa, vendida e junta

Com a polca de resposta.

 

Exemplo: Já se sabia

Que esta câmara apurada,

Inda acabaria um dia      

Numa grande trapalhada.

 

Chega a polca, e, sem detença,

Vendo a discussão, engancha-se,

E resolve: — Há  diferença?

— Se há  diferença, desmancha-se.

 

Digam-me se há ministério,

Juiz, conselho de Estado,

Que resolva este mistério

De modo mais modulado.

 

É simples, quatro compassos,

E muito saracoteio,

Cinturas presas nos braços,

Gravatas cheirando o seio.

 

— Há diferença? diz ela.

Logo ele: — Se há  diferença,

Desmancha-se; e o belo e a bela

Voltam à primeira avença.

 

E polcam de novo: — Ai, morro!

— Nhonhô, seja menos seco!

— Você me adora? — Olhe, eu corro!

— Que graça! Caia no beco!

 

Desmancha, desmancha tudo,

Desmancha, se a vida empaca.

Desmancha, flor de veludo,

Desmancha, aba de casaca!

 

 

 

N.° 12

5 DE FEVEREIRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Quem diria que o Cassino,

Onde a fina flor se ajunta,

Ficaria tão mofino,

Que é quase cousa defunta?

 

Aqueles lustres brilhantes,

Que viram colos e braços,

Pares e pares dançantes,

E os ardores e os cansaços;

 

Que viram andar em valsas,

Quadrilhas, polcas, mazurcas,

Moças finas como as alças, 

Moças gordas como as turcas;

 

Que escutaram tanta cousa

Falada por tanta gente,

Que eternamente repousa,

Ou geme velha e doente;

 

Que viram ir tanta moda

De toucados e vestidos,

Vestidos de grande roda,

E vestidos escorridos;

 

Ministros e diplomatas,

E outros hóspedes ilustres,

E sábios e pataratas...

Ó vós, históricos lustres,

 

Que direis vós desse estado,

Cassino a beira de um pego;

Melhor direi pendurado                           

De um prego, lustres, de um prego?

 

Deve até o gás, aquele

Gás que encheu os vossos bicos,

Que deu vida, em tanta pele,

A tantos colares ricos.

 

Deve ordenados, impostos,

E gastos tão incorretos,

Que até não foram expostos

Por diretores discretos.

 

E vede mais que há ruínas

No edifício, e é necessário

Colher muitas esterlinas

Para torná-lo ao primário.

 

E há mais, há a idéia nova

De alguns acrescentamentos,

É pôr o Cassino à prova

Com outros divertimentos.

 

Oxalá que a cousa saia

Como se deseja. Entanto

Posto que a reforma atraia,

Acho outro melhor encanto.

 

Não basta que haja bilhares,

Conversações e leituras

Partidas familiares,

E algumas outras funduras.

 

Preciso é cousa mais certa,

Cousa que dê gente e cobres,

Disso que chama e que esperta

Vontades ricas e pobres!

 

Não digo elefante branco,

Nem galo de cinco pernas,

Nem a ossada de um rei franco,

Nem luminárias eternas.

 

Mas há cousa que isso tudo

Vale, e vale mais ainda,

Cousa de mira e de estudo,

Cousa finda e nunca finda.

 

Que seja? Um homem. E que homem?

Um homem de Deus, um Santos,

Que entre as dores que o consomem

Não esquece os seus encantos.

 

Esse general que estava

Há pouco em Paris, e voa

Quando apenas se curava.

Voa por mais que lhe doa,

 

Voa à pátria, onde uns pelintras,

A quem confiara o Estado,

Para ir ver as suas Cintras,

E tratar-se descansado,

 

Entenderam que podiam

Passos de pouco préstimo

Governar, e que o fariam,

Como seu, o que era empréstimo.

 

Homem tal, que mais não sente

Que a sede do eterno mando,

Que, inda prostrado e doente,

Quer morrer, mas governando,

 

Olhe o Cassino, valia

Algum esforço em pegá-lo

No dia, no próprio dia

Em que passasse, e guardá-lo.

 

Pois tão depressa a Assembléia

Oriental e aterrada

Soubesse disso — uma idéia

Seria logo votada.

 

Vejam que idéia e que tino:

Que anualmente o seu tesouro

Pagasse ao nosso Cassino

Trezentos mil pesos de ouro,

 

Quando à velha sociedade

Particular encomenda

De guardar nesta cidade

Aquela famosa prenda.

 

Com isso, e mais o cobrado

Às pessoas curiosas,

Passavas de endividado,

Cassino, a maré de rosas.

 

 

 

N.° 13

24 DE FEVEREIRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande

 

Há tanto tempo calado...

E sabem por quê? Por isto:

Pelo número fadado

Da ceia de Jesus Cristo.

 

Número treze. Com esta

São treze as minhas Gazetas.

Numeração mui funesta,

Cheira a cova e a calças pretas.

 

Há, porém, quem afiance

Que treze é dúzia de frade.

É opinião de alcance,

Que anima e que persuade.

 

Contudo, em uma pessoa

Sendo supersticiosa,

Antes que na cousa boa,

Crê na cousa perigosa.

 

Daí veio esta comprida

Vadiação; era medo,

Medo de perder a vida

Cedo, mais que nunca cedo.

 

Lembra-me inda certo dia,

Quando eu tinha treze anos;

Jantamos em companhia

Treze rapazes maganos.

 

Um acabou reprovado

Na Escola de medicina;

Outro está bem mal casado;

Outro teve pior sina.

 

Pior, digo, e em muitos pontos;

Geria a casa dos Bentos;

Fugiu, levando dez contos,

Em vez de levar quinhentos.

 

Outro é político, e anda,

Ora triste, ora sinistro;

Dizem-me que ele tresanda

Vontade de ser ministro.

 

Em dia de crise, voa

A meter-se em casa, à espera

De alguma notícia boa;

Espera que desespera.

 

Só sai quando o gabinete

Fica de todo formado,

E jura pelo cacete

Que há de pô-lo derreado.

 

Bufa, espuma. Abrem-se as câmaras,

E o meu companheiro e amigo

Aguarda o tempo das tâmaras,

E torna ao seu voto antigo.

 

Outro daqueles rapazes

Procura sinceramente

Entre os meios mais capazes

De encher a barriga à gente.

 

Um que seja imediato

E de graúdas prebendas,

Ou testamento, ou barato...

não há pr'as encomendas!

 

por mim, tive um inchaço

Na perna esquerda; diziam

Que essa doença era andaço,

E até que muitos morriam.

 

Sarei; mas foi sobre queda

Couce. A morte tão sombria.

Que tantas casas depreda,

Poupou-me para este dia.

 

Pois, minha dona, aqui fico,

Já daqui me não arranco, 

Achei um recurso rico:

Deixo este número em branco.

 

Não dou Gazeta nem nada;

Não falo em cousa nenhuma,

Gouvea, moção, espada;

Em suma, de nada, em suma.

 

E tanto mais ganho nisto

Que, como se fala em rolo,

Podia um lance imprevisto

Tirar-me o melhor consolo.

 

Que é este: olhar para a rua

Cheia de cousas chibantes,

E dizer — Feliz a lua...

Se é que não tem habitantes.

 

 

 

N.° 14

7 DE MARCO DE 1887.

 

Voilà  ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Se eu fosse aquele Custódio

Gomes ou Bíblia chamado,

Que não deu esmola ou bródio,

Nem mimos por batizado,

 

Pela luz que me alumia,

Juro, e mais que nunca, juro,

Que pesaroso olharia

Para este processo escuro.

 

Daria grandes palmadas,

Ao ler tantas testemunhas,

Tantas cousas encontradas,

Tantas mãos e tantas unhas.

 

Pesquisas de parte a parte,

E um testamento que é tudo:

Ora forjado com arte,

Para uso e para estudo,

 

Ora verdadeiro e filho

Do próprio autor sepultado,

Que ajuntara tanto milho

Para não vê-lo espalhado.

 

Audiências e audiências,

Nomes, nomes, nomes, nomes,

Pendências sobre pendências;

Fosse eu o Custodio Gomes,

 

Suspiraria: —”Bem tolo

Que fui eu em prepará-lo,

Esse rico e imenso bolo,

Se não tinha de papá-lo.

 

“Que ajuntei, dia por dia,

Vintém a vintém suado,

Para deixar tal quantia

De dinheiro amontoado;

 

“Que, quando havia desmancho

Na casa de um inquilino,

Em vez de dar esse gancho;

Sabia intrépido e fino,

 

“Armado de cal, tijolo,

Colher e as cousas restantes,

E lograva recompô-lo,

Melhor do que estava dantes.

 

“Que, se vagava algum prédio

Dos meus, ia ver se tinha

Uma taboa p’ra remédio,

Talha ou taco de cozinha,

 

“Qualquer cousa que algum dia

Valesse às necessidades...

Com pouco e pouco (dizia)

Fazem-se as grandes cidades.

 

“Comi o pão que o Diabo

Amassou; fui parco e ativo,

Trazia as botas no cabo,

Mas a mão firme, o olho vivo.

 

“E no fim de tanta lida,

Não sei se boa ou má sorte,

Saí do rumor da vida,

Sem olhar a paz da morte.

 

“Todos os dias cá leio

Impresso o meu triste nome;

Vejo escrito que fui meio

Maluco e unhas de fome.

 

“A minha vida sem ócios,

Gente de casa e costumes,

E todos os meus negócios...

Já dá para encher volumes!

 

“Ah! se em vez de andar c'o a sela

Na barriga a vida inteira,

Vida de meio tigela,

De poupança e de canseira,

 

“Vivesse à larga, comesse

Deliciosas viandas,

E cauteloso bebesse

Vinho de todas as bandas;

 

“Roupa fina, o meu teatro,

Uma ou outra vez berlinda;

Moças, o diabo a quatro

Até a existência finda;

 

“Quem se lembraria agora

De mim? Dormia esquecido,

Sem chegar a voz sonora

Dos prelos ao meu ouvido.

 

“Convivas e devedores,

Pode ser que se lembrassem

Das ceias e dos favores,

E alguma vez me louvassem;

 

“Mas tão baixinho e tão pouco

Que a voz não me chegaria,

E eu, que acabei meio louco,

Surdo e mudo acabaria”.

 

 

 

N.° 15

20 DE MARCO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

“Câmara Municipal

Sem ter regimento interno!”

Exclamou, com ar paterno

Vereador pontual.

 

“Sem um acordo fraterno,

Um papel, um manual,

Certo, acabaremos mal,

Faremos disto um inferno.

 

“Digo-vos que é usual,

Em qualquer lugar externo

Haver regimento interno

Para evitar todo o mal.”

 

Em tom sossegado e terno

Diz outro municipal

Que o pau (físico ou moral)

É regime mais superno.

 

— “Há de haver algum sinal

Aqui, pelo lado interno,

Do efeito vivo e fraterno

Desse estatuto formal.

 

“Palavras (é dito eterno)

Às sopas não trazem sal;

Quero ação, ação real,

Venha do céu ou do averno.

 

“E que outra menos verbal

Que a ação do cacete alterno,

Não como um vento galerno,

Porém, como um vendaval?

 

Se, assim amparado, externo

Meu parecer cordial,

Para que me serve o tal

Regimento de caderno?

 

“Saiba a câmara atual

Que, se eu aqui não governo,

Tenho este dever paterno

De a não fazer trivial.

 

“Paterno disse? Materno;

Quero outro tom pessoal.

Fique-lhe o tom paternal

Ao colega mais moderno.

 

“Sim, o pau, é pau real

Venha do céu ou do averno,

E palavras (dito eterno)

Às sopas não trazem sal “.

 

Não sei que disse o paterno

Vereador pontual;

Eu, por mim, prefiro a tal

Um copo do meu falerno.

 

Não que seja um casual,

Ruim, triste e subalterno

Modo de encontrar em erno

O consoante final,

 

É falerno e bom falerno

Sorrir da municipal

Que vive tant bien que mal,

Sem ter regimento interno.

 

Ou esse escrito legal

Que o outro chamou caderno,

Para o bom viver paterno  

Vale tudo ou nada val.

 

Se não, por que é que o superno

Parlamento nacional

Conserva um trambolho igual,

Quer de verão, quer de inverno?

 

Se sim, como é curial,

Que não tenha esse uso interno,

Corpo tal, que vive alterno,

Conservador, liberal?

 

Relevem se um subalterno

Entrou nesse cipoal...

Olha a taça de cristal,

Leitor, vamos ao falerno!

 

 

 

N.° 16

27 DE MARCO DE 1887.

 

Voilà  ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Cousa má ou cousa boa

Traz vantagem boa ou má;

O incêndio da Gamboa

Neste aforismo entrará.

 

Não fosse aquele medonho

Desastre que ali se deu,

E do qual nada aqui ponho,

Pois que o leitor tudo leu,

 

Não saberia eu agora,

Pelas narrações que vi,

Uma notícia que chora,

E que — essa, sim — ponho aqui.

 

Foi quando a água, correndo

Pela rua e para o mar,

Ia ardendo, ardendo, ardendo,

Ardendo de amedrontar.

 

Então li que os habitantes

De um beco, com tal horror

Viram as águas flamantes,

Arrastando a morte e a dor,

 

Que pensaram em deixá-lo,

O beco em que há muito estão,

Onde a morte, a fogo e a estalo,

Punha em gelo o coração.

 

Esse beco, o beco escuso,

O beco que nunca vi,

Beco de tão pouco uso,

Que nunca o nome lhe li,

 

Chama-se do conselheiro

Zacharias; leiam bem.

E vá, reflitam primeiro,

Como eu refleti também

 

Ó meu douto Zacharias!

Meu velho parlamentar!

Ó mestre das ironias?

Ó chefe ilustre e exemplar!

 

Quantas e quantas batalhas,

Deste contra iguais varões!

E de quantas, quantas gralhas,

Tiraste o ar de pavões!

 

Sólido, agudo, brilhante,

Sincero, que vale mais,

Depois da carreira ovante,

Depois de glórias reais,

 

Deram-te um beco... Olha, um beco...

De tantas cousas que dar,

Coube-te a ti, homem seco,

Triste beco ao pé do mar.

 

Não digas que são mofinas

Estas nossas distinções

Pintadas pelas esquinas;

Esquinas fazem barões.

 

Não cuides que, nesta lida

Em que andamos, tem de ser

Viva ainda a tua vida,

Escrita ou por escrever.

 

Logo, era uma honrosa graça

Se entrasses no grande rol

Com uma rua, uma praça,

Bem à vista, bem ao sol.

 

Mas, não. De quanto valias,

Agora nada valeis.

Há o beco Zacharias,

E a rua Malvino Reis.

 

Daqui, amigo, derivo

Esta antiga e estranha flor:

“Mais vale súdito vivo

Que enterrado imperador”.

 

 

 

N.º 17

6 DE ABRIL DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Temos nova passarola,

De grandes asas escuras,

Mexidas por certa mola

Que dá sono às criaturas.

 

Chama-se — não sei maneira

De pôr este nome em verso...

Palavra, é grande canseira,

Tão duro é ele e reverso.

 

Deito sílabas de lado,

De outro sílabas arranco,

Trabalho desesperado

E fica o papel em branco.

 

Vá lá: medicina hipnótica,

Custou, mas saiu... Parece

A cousa um tanto estrambótica,

E mais se a gente adoece.

 

Notem bem — é medicina,

Posto a sugestão opere;

Cá o meu bestunto opina

Que um nome de outro difere.

 

Há em sugestão um jeito

Teórico feio, enigmático;

Mas medicina é perfeito,

Perfeito, rápido e prático.

 

Quando aqui há poucos anos,

Já me não lembra em que dia,

Deu entrada entre os humanos

A exata dosimetria,

 

Disse eu: “Invenção potente!

Perfeição do formulário!

Consolação do doente!

Fortuna do boticário!”

 

Mas daí a pouco ouvia

(Outro inimigo da métrica)

Em vez de dosimetria,

Medicina dosimétrica.

 

E isso que cuidava que era

Farmácia, era uma doutrina.

Uma escola em primavera

Contra a velha medicina.

 

Não digo que o sugestivo

Hipnotismo também seja

Ária sobre outro motivo,

Nem igreja contra igreja.

 

Digo... Não sei como diga...

Não sei como diga... Ai, musa

Do diabo e de uma figa!

Você ri! você abusa!

 

Digo (vá) digo que, quando

Cuidava que esta matéria,

Da qual não estou mofando,

Que é séria, três vezes séria,

 

Não pelas razões do grave

Apóstolo, que cogita

Não fazer dela uma chave

P'ra prender moça bonita;

 

Como se amor não tivesse

Outra sugestão nativa,

Que, quando menos parece,

Faz arder o esquivo e a esquiva.

 

Quando (como ia dizendo)

Supunha que a academia,

Por sua vez, lendo e vendo,

Ia explicar a teoria;

 

Que visse os graves problemas

Envoltos na descoberta,

E como antigos sistemas

Passam a questão aberta;

 

Que, como órgão da ciência,

Examinasse, estudasse

A vontade e a consciência

Pela novíssima face;

 

Que visse como a pessoa

Humana se multiplica,

Vai a Túnis e a Lisboa,

E cá reside, e cá fica;

 

Em vez disso,a academia

Dá-lhe duas passadelas

De escova, e manda a teoria

Curar as nossas mazelas.

 

Isto é que me põe os braços

Caídos, e a boca aberta...

E já daqui vejo os passos

Desta nova descoberta.

 

Atrás dos homens sabidos

Virão os que nada sabem,

E gritarão desabridos

Até que os astros desabem.

 

Chegaremos aos cartazes

E aos anúncios de vinhetas,

Pílulas Holloway capazes

De dar beleza às caretas.

 

Ora, há trinta anos havia

Xarope que se chamava

Do Bosque, e tanto valia,

Que tudo e algo mais curava.

 

Hoje, esse licor exótico

Não tem uso, interno ou externo ...

Receio que o sono hipnótico

Chegue a tudo... e ao sono eterno.

 

 

 

N.° 18

13 DE MAIO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Não neguei Bahia ou Minas,

Nem nunca fora capaz

De negar Crato ou Campinas...

Neguei, é certo, Goiás.

 

Pois que Goiás eu supunha

Uma simples convenção,

Sem existência nenhuma,

Menos inda que ilusão.

 

E achava uma prova disto

Naquele caso sem par,

Nunca dantes, nunca visto,

Nem por terra nem por mar:

 

O caso do presidente

Que por dez anos ficou

Presidenciando... Ó gente!

Dez anos! Quem tal sonhou?

 

Dez meses, vá; é costume,

E ninguém pode exigir

Que um homem perca o chorume

A trabalhar e a delir...

 

Ou, se é lícito em matéria

De tanta ponderação

Tão avessa ao chasco e à léria,

Ter alguma opinião,

 

Digo que nem dez semanas...

Dez dias podia ser.

Traduziria em bananas

O chegar, ver e vencer.

 

Não se impõe aos nossos climas

Ars longa... É abreviar,

Como eu abrevio as rimas;

Não coser, alinhavar.

 

Quem podia, em nossa terra,

A não ser entre galés,

Como os comuns de Inglaterra?

Trabalhar dez horas, dez?

 

Os nossos comuns gastaram

Três dias em eleger

Mesa e comissões; e andaram

Perfeitamente, a meu ver.

 

Não vamos crer, porque temos

Sistema parlamentar,

Que só copiar devemos

Os costumes de além-mar,

 

Mas, voltando à vaca fria...

Que vaca? Onde íamos nós?

Que diabo é que eu dizia?

A digressão, vício atroz.

 

Não era a dívida, creio,

Lamberti chamada, uns mil

Contos de papo e recheio,

Contos ou contões com til.

 

Também não era o desfalque

Do Recife... ai, uma flor

De esperanças... ai, não calque,

Não calque nisso, leitor!

 

Eu, que tinha o meu bilhete,

Pronto para enriquecer,

Estou como se um cacete

Me houvesse dado a valer.

 

Mas, com todos os diabos,

Que era então? Não eras tu,

Nariz dos grandes nababos;

Nem tu, céu de Honolulu.

 

Ah! Goiás... Goiás existe;

E tanto que, a vinte e dois

De março, saiu um triste

E longo bando de grous,

 

Como os de que fala o Dante,

Que van cantando lor lai;

Mas cá o pio ora ovante,

Era só: quebrai, quebrai!

 

Um dos grous é delegado,

Outros dizem que juiz;

E tudo foi arrasado,

Ou ficou só por um triz.

 

Defuntos, lavras do Abade,

Mulheres, que ora gemeis

De dor e necessidade,

Justiça esperar deveis.

 

Mas eu daquela ocorrência

Tiro uma lição vivaz:

Goiás tem certa a existência,

Goiás existe, Goiás.

 

 

 

N.° 19

12 DE JUNHO DE 1887.

 

Voilà ce que l’on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Parece que há divergências

Entre câmara e senado;

Comparam-se as influências,

Fala-se em patriciado.

 

Soube disso ultimamente

Pelas folhas... Pelas folhas

Sabe tudo toda a gente,

Votos, lãs, óbitos, rolhas.

 

E, antes de ir ao parlamento,

Direi que soube por elas

Negócio de algum momento,

De varões e moças belas.

 

Li que uma sociedade,

Sociedade Protetora

Dos Animais da cidade

(Ó minha Nossa Senhora!)

 

Ia dissolver-se, e dava

A razão do ato; era, em suma,

Que nenhum esteio achava

Nas leis nem em parte alguma.

 

Ora, eu que me ri, há meses,

De vê-la, toda capricho,

Falar de si muitas vezes

E mui rara vez de um bicho,

 

Injusto fui. Ora o vejo,

E confesso os meus remorsos.

Não fiz justiça ao desejo

Dela nem aos seus esforços,

 

Nem também principalmente

À sua audácia provada

De falar do bruto à gente,

Sem ser para bordoada.

 

Cuidar de cães... Ter piedade

De um triste e magro orelhudo,

Que arrasta pela cidade

Carroça, este mundo e tudo;

 

Isto a sério, isto sem medo

Do riso de outras pessoas;

Fazer disto ofício ledo,

Pôr isto entre as ações boas;

 

Quando é certo que cachorro,

Nem burro, cavalo ou gato,

Não sabem de tal socorro,

Nem dão charanga ou retrato;

 

Trabalhar sem recompensa

Imediata e tangível,

Não é de gente que pensa,

É maluquice visível.

 

Entretanto, a sociedade,

Depois de pensar uns dias,

Fica, e não se persuade

Que entra em baldadas porfias.

 

Baldadas e generosas...

Fique-lhe este prêmio, ao menos:

Espalha as mãos dadivosas

Aos pequenos mais pequenos.

 

Mas, voltando à vaca fria:

Li que a câmara conhece

No senado a primazia,

E se dói, e se aborrece.

 

Não tédio em dar, a ponto

De brigar abertamente;

Faz com tristeza o confronto

Sem magoar a outra gente.

 

Quando muito, ouve calada,

Alguma palavra nua,

E confessa encalistrada

Que ou cede ou vai para a rua.

 

Busca-se agora um remédio,

Alguma cousa que faça

Cessar esse amargo tédio...

Aqui lh'o trago de graça.

 

Deu-m'o um espírito agudo,

Que também é deputado,

Varão conspícuo e sisudo,

Não sei se desanimado.

 

Droga fácil e sumária,

Que não traz dor, mas delícia;

É fazer da temporária

Uma cousa vitalícia.

 

Então, sim; iguais as damas,

Serão iguais os vestidos,

Iguais as perpétuas chamas

Nos peitos endurecidos.

 

Não respondi à pessoa

Que isto me dizia, nada;

Se a idéia é ruim ou boa,

Aí a deixo estampada.

 

 

 

N.° 20

18 DE JUNHO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Rosa de Malherbe, ó rosa

Velha como as botas velhas,

Que foste grata e cheirosa,

E ora desprezada engelhas;

 

Rosa de todos os vasos,

De todas as mãos humanas,

Trazida a todos os casos,

Com lírios e com bananas;

 

Rosa trivial e chocha,

Pior que as mal fabricadas,

Menos que rosa, uma trouxa

De folhas esfarrapadas,

 

Não por má, não que não prestes,

Não que não sejas ainda

A mesma rosa que deste

Vida e cor à estrofe linda,

 

Mas porque é nosso costume,

Se achamos um dito a jeito

Tirar-lhe todo o chorume

Até deixá-lo desfeito.

 

Às vezes, menos que um dito,

Uma locução somente,

Um verbo novo ou bonito,

Pelintra ou cousa decente...

 

Vagabundo é que não anda;

Terá tanto e tanto emprego

De salão ou de quitanda

Que nunca achará sossego;

 

Até que lá vem um dia,

Em que o infeliz surrado,

Gasto, podre, sem valia,

Ao lixo é abandonado.

 

Lá vou eu buscar-te, ó rosa

De Malherbe; é necessário

Fazer citação dengosa

Num caso extraordinário.

 

Não o caso pavoroso

Do sindicato, alta e baixa.

Negocio tão ponderoso

Que acabou quebrando a caixa.

 

Demais, ouço tais notícias,

Tantas cousas segredadas,

Que só pegando em milícias

Para rimar com pancadas.

 

Posto que essa rosa bela

Viveu, como as outras rosas,

Um dia, e sem mais aquela

Perdeu as folhas viçosas.

 

Não trato dessa, mas trato

Da rosa legislativa,

Nascida sem aparato,

Morta quando apenas viva.

 

Foi o senador Uchoa

Que lhe deu vida e nascença,

Pareceu-lhe a idéia boa,

Propô-la sem mais detença.

 

Em verdade, não contava

Ninguém com tal aditivo;

Foi como uma vaca brava

Ao pé de um par pensativo.

 

De mais a mais, sem discurso,

Modesto, calado e manso;

Mal comparando, era um urso

Metido em pernas de ganso.

 

Urso, embora parecesse

Ao golpe das mãos humanas,

Podia ser que vivesse

Uma, duas, três semanas.

 

Era vir, tambor à frente,

Polcando ao som de rabeca,

Lançando ao ar, como gente,

Foguete, bomba ou peteca.

 

Menos de um mês viveria;

Mas, surgindo assim calado,

Viveu apenas um dia,

Foi morto e foi sepultado.

 

Lá que mais tarde apareça

Em forma de idéia nova,

E que outrem se desvaneça

De o passar por outra prova,

 

De maneira que essa rosa,

Que foi rosa e que foi urso,

Ganso e vaca furiosa,

Passe a sol nalgum discurso,

 

Não me espantará. Comigo

Uma só cousa há que espante:

Se desta vez a não digo

É falta de consoante.

 

 

 

N.º 21

4 DE JULHO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Meu Octaviano amigo,

Que idéia foi essa vossa

De deixar que o inimigo

Inda uma vez ganhar possa?

 

Ruim verso, mas aí fica;

Pior que fosse, ficara;

Não há rima bela ou rica;

Brilhante, sólida ou rara,

 

Quando o espírito, pasmado,

Mal sabe o que vai dizendo...

E eu sinto-me apatetado

Ante esse conselho horrendo.

 

Sim, eu penso com Malvino

Que as abstenções são fatais.

É este o melhor ensino

Em cousas eleitorais.

 

Pois não há aí três pessoas...

Digo mal, duas somente,

Sinceras, válidas, boas,

Que lutem proximamente?

 

Que é a vida? Uma batalha,

Tiro ao longe, espada à cinta;

Para os barbeiros, navalha;

Para os escritores, tinta;

 

Para os candidatos, cédula.

Quantas vezes tenho visto

Confessar a gente incrédula

Que não soube atentar nisto!

 

Sim, eu penso com Malvino

Que as abstenções são fatais;

É esse o melhor ensino

Em cousas eleitorais.

 

Eu, em rapaz, era dado

Às moças! Lembra-me que uma

Tinha o corpo bem talhado

E olhos feito verruma.

 

Olhos tais que penetravam

Na gente, em reviradela;

E muitos moços sangravam

Da marcenaria dela.

 

Quis ver se era amado. Um tio,

Fazendo por dissuadir-me,

Andava num corrupio,

E eu firme, três vezes firme.

 

Sempre entendi com Malvino

Que as abstenções são fatais.

É esse o melhor ensino

Em cousas eleitorais.

 

E notem a coincidência;

Essa moça, esse pecado

Tinha a sua residência

Mesmo à rua do Senado.

 

E notem mais que não era

Uma cadeira, mas duas...

Camões, que falou da hera,

Meta aí palavras suas.

 

Confesso que, ao recordá-la,

Sinto em mim tais pensamentos,

Que era capaz de arrancá-la

A cinco ou seis regimentos.

 

Nisto entendo, com Malvino,

Que as abstenções são fatais.

É esse o melhor ensino

Em cousas eleitorais.

 

Lutei muito. Ela fechava

Muitas vezes a janela,

Quando eu por ali passava

Para ver o rosto dela.

 

Outras vezes devolvia

Cartas escritas com sangue...

Lembra-me uma, que dizia:

“Anjinho meu, não se zangue,

 

“Se passo por sua casa;

Menos ainda, se temo

Em alimentar a brasa

Deste fogo em que me queimo.

 

“Que eu penso, como Malvino,

Que as abstenções são fatais;

É esse o melhor ensino

Em cousas eleitorais”.

 

E o certo é que fiz tanto,

Tanto andei por essa rua,

Gemi, gemi tanto canto,

Sem lua, e ainda mais com lua,

 

Que a moça, de compassiva,

Escutou meus ais tristonhos

E pegou da pena esquiva,

Para responder-me aos sonhos.

 

“Sei que és coração perfeito,

Que me amas e que não cansas.

Mando-te aqui do meu peito,

Não amor, mas esperanças...

 

“Crê, amigo, com Malvino,

Que as abstenções são fatais.

E' esse o melhor ensino

Em cousas eleitorais.

 

 

 

N.° 22

1.° DE AGOSTO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Anda agora toda a imprensa,

Ou quase toda, cuidando

De alcançar que, sem detença,

Acabe um vício nefando.

 

Na brasileira linguagem,

Essa nacional usança

Chama-se capoeiragem; 

É uma espécie de dança,

 

Obrigada a cabeçadas,

Rasteiras e desafios,

Facadas e punhaladas,

Tudo o que desperte os brios.

 

Há formados dois partidos,

Dizem, cada qual mais forte,

De tais rancores nutridos,    

Que o melhor desforço é morte.

 

Ora, os jornais que desejam

Ver a boa paz nas ruas,

Reclamam, pedem, forcejam

Contra as duas nações cruas.

 

Referem casos horrendos,

tão vulgares que soam

Como simples dividendos

De bancos que se esboroam.

 

E zangam-se as tais gazetas,

Enchem-se todas de tédio,

Fazem caras e caretas

Por não ver ao mal remédio.

 

Vou consolá-las. É uso

Das alminhas bem nascidas

Dar, contra o pesar intruso

Consolações repetidas.

 

Eu (em tão boa hora o diga,

Que me não minta esta pena!)

Tenho aquela corda amiga

Que, em pena, dá eco à pena.

 

 

Inda quando a rima saia,

Como essa, um pouquinho dura,

(Ou esta da mesma laia)

É rima que dói, mas cura.

 

As consolações — ou antes

A consolação é uma;

Trepa tu pelas estantes,

Busca, arruma, desarruma:

 

E, se tens livros contendo

Decisões de Vinte e Quatro

(Há sessenta anos!) vai lendo

Um aviso áspero e atro.

 

Lê isto: “Para que cessem

De uma vez os capoeiras,

Que as ruas entenebrecem,

Com insolentes canseiras,

 

“Manda o imperador, que sabe

E quer pôr a isto cobro,

Dar a pena a que lhes cabe,

E se for preciso, em dobro.

 

“Recomenda neste caso

Que haja a major energia,

Para que em estreito prazo

Acabe a patifaria;

 

“E seja restituída

A paz aos bons habitantes,

De modo que tenham vida

Igual à que tinham dantes”.

 

Ora, se este aviso expresso

(Que é de vinte e oito de maio)

Teve tão ruim sucesso

Que inda fulge o mesmo raio,

 

Concluo que o capoeira

Nasceu com a liberdade,

Ou deu a nota primeira

Se tem mais que a mesma idade.

 

Valha-nos isto, que ao menos

Consola a gente medrosa,

E faz de alguns agarenos

Cristã gente gloriosa.

 

Sete de abril, a Regência,

Depois a Maioridade,

Partidos em divergência,

Barulhos pela cidade,

 

Guerras cruas e compridas,

Exposições, grandes festas,

Paradas apetecidas,

Tudo viu a faca e a testa...

 

 

 

N.° 23

20 DE AGOSTO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Ouvi que algumas pessoas

Entendidas e capazes

De distribuir coroas,

Andam estudando as bases

 

Da festa que comemore 

Uma grave ação recente:

Jantar que a pança devore,

Doce de atolar o dente,

 

Ou retrato a óleo, e banda,

Com algum palavreado,

Uso desta velha Holanda,

Antigo e repinicado.

 

Há quem pense em monumento,

Obra fina que reúna

Bronze, mármore e cimento,

Ou busto ou simples coluna.

 

Em suma, nada que cheire

A inquérito ou a devassa,

Ou cousa que se lhe abeire...

Grande obra e de grande traça.

 

Porquanto, se aquela preta,

Que ia sendo sepultada,    

Não chega a fazer mareta, 

E desce tranqüila ao nada,

 

Se já no caixão metida  

E levada ao necrotério,

Não suspira pela vida,

Mistério contra mistério,

 

Não tinha havido barulho,

É certo, nem artiguinhos;

Tudo acabava no entulho,

Bichinho entre mil bichinhos;

 

Mas também nem a vitória

Ao inspetor caberia,

Que mandou a preta à gloria,

Aonde ela ir não queria.

 

Pois no rosto da sujeita,

Que ressurgiu com malícia,

Talvez porque em sua seita

Ninguém morre de polícia,

 

Tu, sagaz, tu descobriste

Que a morte era cousa certa,

E — vendo quanto era triste

Viver de ferida aberta

 

No meio desta cidade,

Por mais algum magro dia —

Encheste-te de piedade,

Vibraste de inspetoria.

 

E perdoando à coitada

O resto da vida horrenda,

Mandaste dar-lhe pousada

Debaixo da eterna tenda.

 

Ela, que tornou ao mundo,

Entre as cantatas da imprensa,

Torna ao báratro profundo,

Morre sem pedir licença.

 

Triunfa, inspetor, triunfa

Neste voltarete, filho,

Trunfa, trunfa, trunfa, trunfa,

Que a todos deste um codilho.

 

Imagina tu se abrissem

Inquérito sobre o caso,

E que afinal concluíssem

Que o teu ato era um desazo;

 

E que isto de meter gente

Viva em caixão de finado,

Sem exame competente,

Devia ser castigado,

 

Que cara com que ficávamos,

Agora que a preta é morta!

Seguramente tomávamos

Novas da nossa avó torta.

 

 

 

N.° 24

23 DE AGOSTO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Anda-se isto a desfiar:

Quem será o responsável

Dos atos que praticar

O poder irresponsável?

 

Há várias opiniões

Sobre esta questão pendente;

Contradizem-se as razões,

Um afirma, outro desmente.

 

Vão aos livros e aos Anais

Buscar uma extensa lista

De palavras textuais

Deste ou daquele estadista.

 

Nem só nacionais, também

Surgem nomes estrangeiros,

Nomes ilustres, que têm

Merecidos pregoeiros.

 

Um deles foi o senhor

Benjamin Constant, pessoa

Que o poder moderado

Criou e deu à coroa.

 

Foi ele, em escrito seu,

Que à constituição brasília,

Sem saber, o artigo deu

Que pôs a toda família

 

Dos poderes, um poder

Que a regesse e moderasse...

Outros porfiam em ver

O caso por outra face.

 

E tu, Benjamin, fatal,    

Grande amador de pequenas,

Tu, morto, tu, imortal,

Lá das regiões serenas,

 

Que pensas, que pensas tu

Nesta questão, obra tua?

Tira do espírito nu

Opinião crua e nua,

 

Põe-lhe sobrescrito a mim,

Se achas melhor escrevê-la;

Ou brada-m'a, Benjamin,

Que eu poderei entendê-la.

 

E logo uma bela voz

Me entrou pelo gabinete,

Fininha como um retrós,

Viva como um diabrete.

 

E disse: — “Queres saber

O que nesta causa penso?

Qual o meu modo de ver?

A que partido pertenço?

 

“Se acho que o moderador,

Nos atos em que modera,

Tem ou não algum senhor

Que responde e o desonera?

 

“Se o poder, a quem chamei

Neutro, pode, irresponsável,

Ter por isso mesmo em lei

Um ministro responsável?...”

 

“ — Sim, despacha, respondi

Já zangado e impaciente.

— “Di-lo-ei a ti, a ti;

Se queres, di-lo a mais gente.

 

“Não verás em mim a flor

Da modéstia, planta rara,

Responderei com rigor,

Certeza e palavra clara.

 

“Digo que gostei de ouvir

Idéias finas e tantas,

Gostei de as ver discutir

Leão, Cotegipe e Dantas.

 

“Mas, com franqueza, eu deitei

Tudo ao mar, nesta viagem.

Só uma cousa guardei

E trago-a cá na bagagem.

 

“Não que julgue sem valor

Outras páginas escritas

Ou faladas, não, senhor;

São puras e são bonitas.

 

“Foram feitas ao buril,

Pensadas e bem pensadas.

Deixei-as às mil e às  mil,

Por esse mundo espalhadas.

 

“Mas agora que aqui estou,

Livre de ruins cuidados,

Digo: o melhor que ficou

Dos escritos lá deixados

 

“Foi... palavra que não sei,

Não sei bem como me exprima:

Foi um livrinho de lei,

Uma jóia, uma obra-prima,

 

Um livro, um livrinho só,

Que entre os escritos passados,

Resiste ao mórbido pó —

Dos anos empoeirados.

 

“Custa-me dizê-lo, crê:

Um romance, e pequenino;

Relê, amigo, relê

O meu Adolpho; é divino.

 

“Do mais tanto cuido aqui

Como daquela camisa,

A primeira que vesti...

Diz a rima que era lisa”.

 

 

 

N.° 25

30 DE AGOSTO DE 1887.

 

Voilà ce que l’on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Eu, pecador, me confesso

Ao leitor onipotente,

E a grã bondade lhe peço

De ouvir pacientemente

 

Uma lengalenga longa,

Uma longa lengalenga,

Áspera, como a araponga,

E tarda como um capenga.

 

Saiba Sua Senhoria

Que, em cousas parlamentares,

A minha sabedoria

Vale a de um ou dois muares.

 

Não? Isso é bondade sua...

Modéstia minha? Qual nada!

Digo-lhe a verdade crua,

Nua e desavergonhada.

 

Não entendo patavina,

Eu, que entendo a lei mosaica,

Humana, embora divina,

Límpida, conquanto ataica.

 

“E disse o Senhor: Faze isto,

Moisés, faze aquilo, ordena,

Eu, c'o meu poder te assisto;

Põe esta pena e esta pena”.

 

Eram assim leis sem voto,

Sem consulta, sem mais nada.

Deus falava ao grão devoto,

E vinha a lei promulgada.

 

Mas por que é que tanta gente,

Reunida numa sala,

Examina a lei pendente

Escuta, cogita e fala?

 

E por que vota? pergunto ...

Nisto abro uma folha, e leio

Bem explicado este assunto:

Era um discurso alto e cheio.

 

O orador, um deputado

Do Ceará, respondia

A um que o tinha acusado

De manter a escravaria.

 

Defendia-se, mostrando

Que, desde anos longos, fora

Dos que viveram chamando

A aurora libertadora.

 

Que a obra da liberdade

Era também obra sua,

Fê-la com alacridade,

Sem proclamá-lo na rua.

 

Votou, é certo, em contrário

Ao projeto com que o Dantas

Criou o sexagenário

E umas outras cousas tantas.

 

Mas não foi porque o julgasse

Oposto ao que entende justo,

Nem porque ele lhe vibrasse

Qualquer sensação de susto.

 

Foi só porque o gabinete

Para o Ceará mandara

Um presidente e um cacete,

Ambos de muito má cara.

 

Ele, vendo os seus amigos

Perseguidos, destinados,

Depois de grandes perigos,

A serem exterminados.

 

Votou contra a lei; e a prova

De que lhe não era oposto,

É que, vindo gente nova,

Votou a lei, de bom rosto.

 

E conclui assim: “Senhores,

Qualquer outro que se achasse,

Cheio de iguais amargores

E injúrias da mesma classe,

 

Faria o que fiz”. Pasmado,

De tudo o que não sabia,

Vim confessá-lo humilhado

Ante Vossa Senhoria.

 

 

 

N.º 26

6 DE SETEMBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Eustáquio Primo de Seixas,

Morador em Santo Amaro

(Bahia), fez umas queixas

Sobre um caso duro e amaro.

 

Parece que um tal Francisco

De Paula Aragão e Souza,

Para reduzi-lo a cisco

E pôr-lhe em cima uma lousa,

 

 

Pegou de um revólver, obra

Bem feita, acabada,

Pior que dente de cobra,

Melhor que fio de espada;

 

E, indo ao sobredito Seixas,

Despejou-lhe, não a arma

Nem precisamente endechas,

Nem violetas de Parma,

 

Mas uma descompostura,

Como se diz vulgarmente,

Porque quando a gente cura

De falar mais finamente,

 

Diz torrentes de impropérios;

Tal foi o modo limado

Que, em seus artigos tão sérios,

Empregou este agravado.

 

Eustáquio estava na rua

Da Matriz — tão concorrida

De gente, que viu a sua

Pessoa assim ofendida.

 

De tais injúrias e acintes

Ouviu metade calado,

Até que, em tantos ouvintes,

Um houve, mais animado,

 

Que pôde dar escapula

Ao que ouvia tanta cousa,

Mas o diabo que açula

A alma a Aragão e Souza,

 

Faz com que lhe não estaque

A torrente de impropérios,

Sotaque sobre sotaque,

Ditérios sobre ditérios.

 

Já que em casa recolhido

Eustáquio, vai muita gente

Pôr-se ao lado do ofendido

Contra aquele ato insolente.

 

Vai mais; vai gente inimiga;

Vai mais; vai o próprio Souza

Pedir-lhe que o não persiga;

Que lhe perdoe tanta cousa.

 

Responde-lhe Seixas: “Pronto

Estou a dar-lhe o que pede,

Mas só quero um ponto, um ponto,

E cederei se me cede.

 

“Peço-lhe que se retrate

Das injúrias que me há dito...”

Aragão, dado ao combate,

Repete, e repete escrito

 

Todas as injúrias feitas...

Aqui, meu leitor amigo,

Tu que buscas, tu que espreitas

Achar sentido ao que digo,

 

Não decifrando a charada,

Perguntas naturalmente:

“Que tenho eu com isso?” — “Nada,

Respondo-te eu; e a Regente?”

 

Porque o mais rico da cousa

E' que o tal Eustáquio Seixas,

Contra o Aragão e Souza,

Trouxe à imprensa as suas queixas,

 

Escrevendo: “À Sereníssima

Princesa Regente”. Ó dura

Condição triste e tristíssima,

Que mal sei como se atura!

 

Governar para ler estas

E outras ridiculezas...

Ó sorte das régias testas!

Ó destino de princesas!

 

Que um homem em Santo Amaro,

Ouvindo duas graçolas

(Caso antes comum que raro)

Toque no chapéu de molas,

 

Enfie a casaca, e calce

As botas envernizadas,

E, todo flor e realce,

Suba as imperiais escadas,

 

Para contar uma cousa

Que se conta ao delegado

Isto é, que Aragão e Souza

É pouco morigerado,

 

Palavra que desanima

De ocupar na terra um sólio:

Antes governar a rima,

Bem ou mal como o Malvólio.

 

 

 

N.° 27

13 DE SETEMBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Se Deus me dissesse um dia:

— Que desejas tu, Malvólio?

Castelos na Normandia?

Uma biblioteca in-fólio?

 

“Um punhado de brilhantes,

Grandes como ovos de pomba?

Um batalhão de elefantes,

Marfim puro e extensa tromba?

 

“Moças, com as quais cantasses

A vida, e pelo estio,

Cantigas velhas que achasses,

Como esta, no peito frio:

 

“Cajueiro pequenino,

“Carregadinho de flores

“Eu também sou pequenino,

“Carregadinho de amores.

 

“Ou tendo espíritos altos,

Ir correr desejarias

Perigos e sobressaltos

De Rússias e de Turquias,

 

“Pegando, com alma icária

E braços impacientes

A coroa da Bulgária,

E defendê-la das gentes?”

 

Responder-lhe-ia eu, contrito:

— Não desejo, ó verdadeiro

Deus grande, Deus infinito,

Ser castelão nem livreiro,

 

Nem ter pedras preciosas,

Nem legiões de tamanhas

Alimárias pavorosas,

Vindas de terras estranhas,

 

 

Nem bonitas raparigas

Com quem eu cantar pudera

Algumas velhas cantigas,

Cantigas de primavera,

 

Menos inda, muito menos,

Correr sem mais nada, à toa,

Pequeno entre os mais pequenos,

A apanhar uma coroa.

 

Não, o que eu quisera, ó divo

Senhor, que mandais a tudo,

O meu desejo mais vivo,

Que me corrói, longo e mudo,

 

Era entrar pela janela

Do senado... Olhai, não digo

Pela porta. A porta é bela,

Porém já não vai comigo.

 

A porta, traz como agora,

Obrigações superfinas;

Li-as em prosa canora,

Sobre as eleições de Minas.

 

A primeira é que resida

O candidato na terra,

Pois se acaso a própria vida

A outra terra o desterra,

 

Perca as tristes esperanças

De conservar eleitores.

Se há exemplos, são carranças,

Outra quadra, outros amores.

 

Olindas, Celsos, Correias,

Nabucos e Zacharias,

São estragadas candeias,

De outros homens e outros dias.

 

Agora, quanto à segunda

Obrigação do diabo,

É igualmente profunda...

Não se quer nenhum nababo,

 

Que ande assim, como um tesouro,

Em carruagens de prata,

Cavalos ferrados de ouro,

Um jantar em cada pata;

 

Mas se o candidato é pobre

E passa a vida lidada,

Não entra em funduras. Dobre,

Amigo, dobre a parada.

 

Ora, eu que há muito suspiro

Pelo senado, e aqui moro,

Lidando, que mal respiro,

Sem o vil metal que adoro,

 

Uma noite adormecia

Lendo alguma velha história

De Veneza ou da Turquia,

E acordava em plena glória,

 

Diante do presidente

Aparecia sentado.

Ai, Deus justo, ai, Deus clemente...

Janela... curul... senado...

 

 

 

N.° 28

20 DE SETEMBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Quando tudo em paz corria

Cai uma nuvem prenhada

De chuva e de ventania,

De saraiva e trovoada.

 

E cai lá naquela banda

Do paço dos senadores,

O melhor paço da Holanda,

Boa pedra, arminho e flores.

 

Inda se fosse no paço

Dos deputados, vá feito;

Embora sendo embaraço,

Caía no próprio leito.

 

Pois se este paço figura  

Ao pé do velho senado,

Que afigura e transfigura,

Como ele, o que lhe é levado,

 

Certo é que é mais dada a zona

Aos temporais desabridos;

Quem lá vai mete-se em lona,

Oleado e outros tecidos.

 

 

Mas, no senado, em verdade,

Posto não seja o primeiro

Exemplo de tempestade,

Nem talvez o derradeiro,

 

Causa espanto, porque tudo

Parecia que ia andando,

Não inteiramente mudo,    

Mas lentamente calando.

 

Vai então, como eu buscasse

Saber por algum amigo, 

Maneira com que explicasse 

Este singular perigo,

 

Achei um vizinho, um magro,

Um que não tem este olho;

Chamá-lo-ia Meleagro,           

Di-lo-ia autor de algum molho,

 

Se não parecesse abuso

Esse recurso mofino,

Mofino, mas não escuso...

Os versos têm seu destino!

 

Tenho sido belo, às vezes,

Só por exigi-lo a rima;

Chama-se a um homem Menezes

Quando não passa de um Lima.

 

Mas, qualquer que seja o nome

Do vizinho consultado,

Fui lá p'ra matar a fome

E saí esfomeado.

 

Procurei-o, como disse,

E no meio da palestra

Aconteceu que surgisse

Uma questão grave e mestra:

 

Se o senado é que governa

Ou a câmara. O sujeito,

Querendo passar-me a perna,

Tira estas vozes do peito:

 

“— Dizem que a câmara baixa,

Conforme a prática inglesa, 

Assim como tem a caixa 

Da receita e da despesa,

 

“Rege a política, e forma

Os homens à sua imagem,

Que é essa a única norma

Da parlamentar viagem.

 

“Sendo, porém, cousa certa

Que os ingleses querem antes

Achar sempre a porta aberta.

Dos comuns representantes.

 

E comuns há que padecem,

Se a boa sorte lhes falta,

E após os pais que falecem

Vão para a câmara alta,

 

“Onde é menor o trabalho,

Sessões curtas, pouca vida,

Galho do poder, mas galho

De folha amarelecida;

 

“Cá buscamos o senado;

E se o que há mais forte e fino

Tem ali lugar marcado

É que ali mora o Destino”.

 

 

 

N.° 29

27 DE SETEMBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

A semana que há passado...

Deixe leitor que me escuse,

E de um falar tão usado

Abuse também, abuse.

 

Há passado, hão carcomido...

Hão, hão, hão, hão posto em tudo,

Hão, hão, hão, hão recolhido...

Estilo de tartamudo.

 

Ai, gosto! ai, cultura! ai, gosto!

Demos um jeito e outro jeito:

Venha dispor e há disposto

Venha dispor e há desfeito.

 

Mas usar de uma maneira

Até reduzi-la ao fio,

Não é estilo, é canseira;

Não dá sabor, dá fastio.

 

 

Porém... Já me não recordo   

Do que ia dizer. Diabo!

Naveguei para bombordo,  

E fui esbarrar a um cabo.

 

Outro rumo... Ah! sim; falava

Da outra semana. Cheia

Esteve de gente escrava,

Desde o almoço até a ceia.

 

Projetos e mais projetos,  

Planos atrás de outros planos,

Indiretos e diretos,

Dois anos ou cinco anos.

 

Fundo, depreciamento,

Liberdade nua e crua;

Era o assunto do momento,

No bond, em casa, na rua.

 

Pois se os próprios advogados

(E quem mais que eles?) tiveram

Debates acalorados

No Instituto, em que nos deram

 

Uma questão — se, fundado

Este regime presente,

Pode ser considerado

O escravo inda escravo ou gente.

 

Digo mal:  — inda é cativo

Ou statu liber?  Qual seja

Correu lá debate vivo,

Melhor dizemos peleja.

 

 

Mas peleja de armas finas,

Sem deixar ninguém molesto:

Nem facas, nem colubrinas,

Digesto contra Digesto.

 

Uns acham que é este o caso

Do statu liber. Havendo

Condição marcada ou prazo,

Não há mais o nome horrendo.

 

Outros, que não são sujeitos

Ferozes nem sanguinários,

Combatem esses efeitos

Com argumentos contrários.

 

Eu, que suponho acertado,

Sempre nos casos como esses,

Indagar do interessado

Onde acha os seus interesses,

 

Chamei cá do meu poleiro

Um preto que ia passando,

Carregando um tabuleiro,

Carregando e apregoando.

 

E disse-lhe: “Pai Silvério, 

Guarda as alfaces e as couves;

Tenho negócio mais sério,    

Quero que m'o expliques. Ouves?”

 

Contei-lhe em palavras lisas,

Quais as teses do Instituto,

Opiniões e divisas.

Que há de responder-me o bruto?

 

— “Meu senhor, eu, entra ano,

Sai ano, trabalho nisto;

Há muito senhor humano,

Mas o meu é nunca visto.

 

“Pancada, quando não vendo,

Pancada que dói, que arde;

Se vendo o que ando vendendo,

Pancada, por chegar tarde.

 

“Dia santo nem domingo

Não tenho. Comida pouca:

Pires de feijão, e um pingo

De café, que molha a boca.

 

“Por isso, digo ao perfeito

Instituto, grande e bravo:

Tu falou muito direito,

Tu tá livre, eu fico escravo “.

 

 

 

N.° 30

4 DE OUTUBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Há muito inglês já defunto,

Canning, Peel e consortes,

Que são o perpétuo assunto

Da eloqüência e seus transportes.

 

 

Cada ano que passa, deixa

Nos anais parlamentares,

Entre um ataque e uma queixa,

Esses nomes singulares.

 

Assim, posto que vivamos

À moda francesa, é certo

Que todos imaginamos   

Estar dos ingleses perto.

 

Vede, por exemplo, os nomes

Dos que escrevem de política;

Não são Barros, não são Gomes,

Nomes de fama somítica.

 

Entre um Guizot e um Horácio,

Quantos Walpoles facundos!

Pobre Gália! Pobre Lácio!

Britânia é mundo entre mundos.

 

E, na verdade, a Inglaterra           

Tem de sobra exemplos grandes

Para ensinar toda a terra,

Do Cáucaso até os Andes.

 

Hão de dizer, com justiça,

Que até aqui tenho usado     

O latim da velha missa,                               

Já sabido e decorado.

 

Que sou vulgar como um bule

De botequim, — como um homem

Que, perdendo ontem na pule,

Narra as dores que o consomem;

 

Vulgar como um par de botas

Rotas e desengraxadas,

Vulgar como as quatro sotas,

Copas, ouro, paus e espadas.

 

Muito bem; mas, tendo em vista

Embora a vulgaridade

Procurar alguma pista,

Por onde ache a realidade,

 

Li agora um documento,

Circular de candidato,

Feita com discernimento,

Bom estilo, ameno e grato.

 

Tão grato, que pede o voto

Como um favor, e confessa

Que, vencido o terremoto,

Fará que jamais o esqueça.

 

Que seja novo não digo,

Nem novo, nem menos raro;

É costume um pouco antigo,

Vulgar, sem ofensa e caro.

 

Pois o eleitor, de outro lado,

Não faz favores à toa,

Quer ser mui cumprimentado

Em palavras e em pessoa.

 

Há tal que o votinho nega

A gente que o não visite,

Não que queira ver se emprega

Bem a cédula que emite,

 

Perguntando ao candidato

Qual a escola que mais usa,

Se a de um governo barato,

Se a do que gaste e produza;

 

Não, senhor; mas tão somente

Para ouvir cousinhas finas,

E mostrar a sua gente,

A esposa, a sogra e as meninas.

 

Ouvir que a filha terceira

Há de ser uma figura

Como a segunda e a primeira,

Modelos de formosura,

 

Ouvir um bom elogio

À laranjinha da casa;

Dar notícia de algum tio,

Que perdeu na ilha Rasa.

 

Ver que o candidato mira

De quando em quando a poltrona,

Em que se alarga e se estira,

Gesto de louvor que a abona.

 

Se há tais entre os eleitores,

E pedes, ó candidato,

Como o favor dos favores,

O voto, e lhes ficas grato,

 

Para que tantos ingleses,

Que dormem nas sepulturas,

Virem bailar tantas vezes

Nas nossas legislaturas?

 

Nacionalizemos isto.

Queres citar? Cita, cita

Nome cá nascido e visto.

Deixe o Pitt; cita o Pitta!

 

 

 

N.º 31

11 DE OUTUBRO DE 1887

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Na semana que lá foi,

Houve cousas do diabo,

Já de vaca, não de boi,

Já com rabo, já sem rabo.

 

Sem rabo o que apareceu,

Foi a grande tartaruga,

Que naufragou e morreu

Em praia onde o mar se aluga.

 

Espécie nada comum,

Foi logo classificada,

Sem nenhum erro, nenhum,

E está no Museu guardada.

 

Ora, é muito de saber

Que a bicha, ao pousar na praia,

Sorriu consigo de ver

Tanta senhora sem saia.

 

E consigo murmurou,

Porque é animal sabido,

Tanto que Deus lhe botou

Nome latino e comprido:

 

— “Mostra a gente ao pé do mar

O que numa sala esconde.

Tudo é conforme o lugar,

Preciso é saber aonde.

 

“E tais encantos em flor,

Que ninguém arrastaria

Pela rua do Ouvidor

De noite, e menos de dia,

 

“Aqui publicados são

Sem bulha, nem matinada,

Aos olhos do camarão

Que nada, e do que não nada.

 

“Pascal é que disse bem

Quando da justiça ria:

“Verdade aqui, erro além “.

Cabe o dito à rouparia.”

 

Com rabo, houve o edital

Da câmara, um documento

Que apareceu no Jornal

No mesmo dia e momento

 

Em que deviam abrir

As propostas que acudissem ...

Aos que ficaram a rir,

Bradaram que se não rissem.

 

Que o tenente-coronel

Presidente é que mandara

Compor aquele papel

Que a folha não publicara,

 

Conquanto a tempo o doutor

Secretário o remetesse...

Não sei se o comendador

Tesoureiro andou com esse.

 

Pode ser que o general

Procurador da fazenda,

Como é muito bom fiscal,

Não gostasse da encomenda.

 

Pode ser; mas pode ser

Também que o protonotário

Escrivão, em vez de ler

O Jornal, lesse o Diário.

 

Ora, em verdade, foi bom                     

O caso: fico inteirado          

Que é de rigor e bom tom      

Cargo com título ao lado.

 

E não escrever papel

Em que venha o presidente

Sem tenente-coronel,

Seria pouco e insolente.

 

Quanto ao que houve, não de boi,

Mas só de vaca, naquela

Semana que lá se foi,

Certo não foi bagatela.

 

Foi um projeto que quer

População vacinada,

Seja homem ou mulher,   

Gente grande ou criançada.

 

E não mais se casará  

Sem se provar que a menina

E o noivo tiveram já

Ultimamente vacina.

 

Mas, como falasse alguém

Na câmara contra isto,

Dizendo que a cousa tem           

Pecha contra a lei de Cristo,

 

Responderam-lhe que sim,

Que os noivos terão dispensa

Bastará ao grande fim

Toda a mais lei, que é extensa.

 

Pois manda revacinar,   

Além dos tenros infantes,

Soldados de terra e mar,

Funcionários e estudantes.

 

Mas por que se há de excluir

Desse dever mal cruento

Quem vai à gente pedir

Um lugar no parlamento?

 

Quero crer que as ambições

Hão de vir em grande malta,

Suprindo as vacinações 

O mérito que lhes falta.

 

Dir-se-á de um legislador

Morto, que era homem honrado,

Bom caráter, bom senhor,   

Modesto e revacinado.

 

E, pois que um caso esqueci

Da outra semana, digo

Muito à puridade aqui,

Que falta à lei outro artigo.

 

Falta artigo, pelo qual,

Em caso de desafio,

Pudesse um homem mortal

cortar à pendenga o fio.

 

Corta deste modo: ouvir

O outro, em lances extremos,

E responder-lhe a sorrir:

“Vacine-se e falaremos”.

 

 

 

N.° 32

18 DE OUTUBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Tudo foge; fogem autos,

Fogem onças, foge tudo.

Ó guardas moles e incautos!

Ó corações de veludo!

 

Uma onça, que vivia

Em casa de uma senhora,

Viu aberta a porta um dia

Da gaiola, e foi-se embora.

 

Na roça? Não; na cidade.

Que cidade? É boa! a tua.

Dou mais esta claridade:

Era na rua... na rua...

 

Rua da América... Pronto!

Mas, se não leste a notícia,

Cuidarás que é isto um conto,                                             

É talvez conto e malícia.

 

Não, amigo. Era uma onça,

Tinha aos três anos chegado;

Vivia discreta e sonsa

Em casa, num gradeado.

 

Vai senão quando, — um descuido —                            

Deixaram-lhe aberta a porta,

E a onça sentiu um fluido

Que não sente onça já morta.

 

Sentiu passar-lhe no lombo         

O fluido da liberdade,

E, ligeira como um pombo,

Deixou a casa da grade.

 

 

Nenhum liberal, que o seja

Como deve, achará livro

De tantos da sua igreja

Que condene este carniv’ro.

 

Pois se foge o papagaio,

O macaco, a patativa,

Seja outubro, seja maio,

Tenha ou não tenha mãe viva,

 

Que muito é lá que uma nobre

Onça das brasílias matas,

Logo que possa, recobre

O uso das sua patas?

 

Lá por viver entre gente

E canapés delicados,

Não acho suficiente

Para condená-la a brados.

 

Certo é que fugiu. Bem perto,

Duas casas logo abaixo,

Achou como que um deserto,

E resolveu:”Lá me encaixo”.

 

Era casa em obras. Passa

Todo o sábado e domingo,

Sem comer sombra de caça,

Sem beber de sangue um pingo.

 

Na segunda-feira, cedo

Sobe ali um operário,

Despido de qualquer medo:

Vai ganhar o seu salário.

 

Casualmente (bendito

Seja Deus!) o desgraçado

Vê o olhar da onça fito

De dentro de um tabuado.

 

Foge; muita gente acode

Armada, e com laço e rede,

A ver se apanhá-la pode;

Ela, com fome e com sede,

 

Fere o pé a um bom valente,

Mas é já laçada, e morre

Á faca da demais gente,

Que ali bravamente corre.

 

E porque não era grave

A ferida recebida,

Fechou-se com dura chave

A história, e mais a ferida.

 

E disse alguém, que não erra

Ocasião de uma vasa:

— “Que há mais natural na terra

Que criar onças em casa?

 

“Quando muito, demos graças

Aos deuses, que esta podia

Matar duas ou três praças,

E toda um inspetoria.

 

“Não há onças espanholas?

Não há onças desgraçadas

Estas não rugem nas solas

Das botas acalcanhadas?

 

“Virá tempo em que não ande

Pessoa que se respeite

Sem uma onça já grande,

Ou, pelo menos, de leite.

 

“Que toda a senhora fina,

De passeio ou de passagem,

Tenha uma onça menina

Ao lado, na carruagem.

 

“Que algumas fujam, que trinquem

O pé a qualquer pessoa,

Ou por mal, ou porque brinquem

Pode acontecer, é boa!

 

“Mas quem já viu neste mundo

Progresso sem sacrifício?

Sangue que corre é fecundo,

E há virtude que foi vício.

 

“Cavalo que anda direito

Já foi bravio e inquieto,

Onça que morde um sujeito,

Talvez não lhe morda o neto.

 

“Vamos, pois, encomendemos

Onças, muitas onçazinhas,

E nos quintais as criemos,

Como se criam galinhas”.

 

 

 

N.° 33

29 DE OUTUBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Alá! por Alá! Cá tenho

Inda nos tristes ouvidos

O som duro, o som ferrenho,

Destes termos desabridos:

 

“Os liberais padecemos

Como os cristãos da Bulgária

Padecem duros extremos

Da turca espada nefária”.

 

E porque tenho uma veia

Com sangue de Mafamede,

Cousa que não acho feia,

Que não desdoura, nem fede;

 

Juro que andei azoinado

Com o dito do estadista,

Azoinado e envergonhado,

Sem voz, sem sabor, sem vista.

 

Mas (Alá é grande!) agora,

Agora, neste momento,

Chegam notícias de fora,

Da Bulgária e de espavento...

 

Vejo que o governo novo

Daquele povo inquieto,

Para aquietar o povo,

Achou um meio discreto.

 

Convidou madre Censura

Para rever os diários,

Enterrando a unha dura

Por modos crespos e vários,

 

Nos trechos em que apareça

Opinião tão à toa,

Que em tudo, se mostre avessa

Ao que ela entender que é boa.

 

Assim podem os censores

Riscando uma parte ou tudo,

Fazer dos espinhos flores,

Fazer do rudo veludo.

 

É pouco. Um dos jornalistas

Tantas fez que foi pegado,

E teve, de mãos artistas,

Não pouco, nem moderado,

 

Castigo de tal volume

Que era de ver... Cem açoites!

Quase lhe levam o lume,

Quase lhe dão boas noites.

 

E disseram-lhe ao soltá-lo.

Que se voltasse à escritura,

Haviam de castigá-lo,

De outra forma inda mais dura.

 

Ora, o que me espanta nisto

É que a gente que maltrata

Os pobres filhos de Cristo

São cristãos de pura nata.

 

Lá que impeçam tais diários,

Acho até bom, não somente

Nos dias incendiários,

Mas nos de vida corrente.

 

Nunca veio mal de um mudo,

E imprimir o que se pensa,

Tudo, tudo, ou quase tudo,

É desastre, não imprensa.

 

Assim, acho grão perigo        

Que, em obséquio ao Ramalho

Ortigão, meu grande amigo,

Honra do engenho e trabalho,

 

Desse a Gazeta, uma festa,

De autores e jornalistas,

Cerrada e longa floresta

De opiniões e de vistas.

 

Conservadores sentados,

Em frente a republicanos,

E liberais afamados

Ao lado de ultramontanos.

 

Gente ruim, gente feia,

Merecia nessa noite,

Não festa, porém, cadeia,

Não Borgonha, mas açoite.

 

País de tal liberdade

E tolerância tamanha,

Vai com toda a alacridade

Ao lodo, ao delírio, à sanha.

 

Olhemos para a Bulgária;

Arruma, cristão amigo,

Simples pancada ordinária,

Cem açoites por artigo.

 

 

 

N.° 34

2 DE NOVEMBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Que fará, estando junto

Sócrates a um hotentote?

Falo de varão defunto,

Pode sair livre o mote...

 

E, antes de mais nada, digo

Que essa junção de pessoas

Vi hoje mesmo em artigo

Repleto de cousas boas.

 

O artigo é de sociedade

Espírita e brasileira;

Trata só da humanidade,

É divisa sua e inteira.

 

Que eu já sou meio espírita,

Não há negá-lo. Costumo

Pôr na cabeça uma fita,

Em vez do chapéu a prumo.

 

Chamo à vida uma grã bota

Calçada pelo diabo;

Quando escrevo alguma nota,

Principio e não acabo.

 

Dou o João, velho amigo,

Nascido em cinqüenta e sete;

E ele, quando isto lhe digo,

Todo se alegra e derrete.

 

E proclamam em recompensa,

Que sou de cinqüenta e cinco;

Rimo-nos em boa avença,   

Do meu brinco e do seu brinco.

 

Aqui há poucas semanas,

Puxei fieira na rua,

E comi sete bananas

Com pimenta e linha crua.

 

José Telha, que no sótão   

Sustenta os seus macaquinhos,

Crê que alguns deles se botam

Para a casa dos vizinhos.

 

Mas eu respondo-lhe a cada

Palavra com heroísmo,

Que o que parece pancada,

É simples espiritismo.

 

E, voltando à vaca fria,

Sócrates era um sujeito 

De grande filosofia,    

Alta mente, heróico peito.

 

O hotentote, — conquanto

Lembre uma Vênus famosa

Pelo volumoso encanto,

Mas tão pouco volumosa,

 

Comparada àquela raça,

Tão pouco, como seria

Uma uva a uma taça,

A laranja à melancia;

 

O hotentote, em bestunto,

É pouco mais que um cavalo,   

Dê-se-lhe um simples assunto,

Mal poderá penetrá-lo.

 

Mas, sendo um e outro feitos

Pela mesma mão divina,

Força é que sejam perfeitos,

Di-lo a grande Espiritina.

 

Daí a necessidade

De andar a gente em charola,

Não de cidade em cidade,                 

Mas de uma bola a outra bola.

 

Morre aqui algum peralta,

Que furtou grandes dinheiros,

Ressurge em bola mais alta,  

Entre os simples caloteiros.

 

Vai a outra, e paga em dia

Todas as dívidas suas;

Vai a outra, e principia

A dar esmolas nas ruas.

 

Vai a outra, e já suprime

As ruas; chega à perfeita

Máxima pura e sublime

De só saber a direita.

 

Sobe finalmente à esfera

Onde uma sociedade

De arcanjos lindos o espera,

E o conduz à eternidade.

 

Ali Sócrates jocundo

Receberá o hotentote,

E falarão deste mundo,

E glosarão este mote:

 

— Para que há de haver juízes

Em Berlim, ou em outra parte?

Têm aqui iguais narizes

O inocente e Malazarte.

 

 

 

N.º 35

8 DE NOVEMBRO DE 1877.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Vem cá, Gemma Cuniberti,

Dize-me aqui a esta gente

Quanto se deve ao Lamberti,

Exata, precisamente.

 

Que não és vereadora,

Escrivã, nem magistrada,

Bem o sei, minha senhora,

A mim não me escapa nada.

 

Nem é preciso que digas

Cousa alguma, não sabendo

As somas novas e antigas

Deste negócio estupendo.

 

Basta que me tenhas dado

Rima para o italiano.

Agora que está rimado,

Volta à paz de todo o ano.

 

Pois saber exato, exato,

Quanto é que lhe deve a gente,

Não é só trabalho ingrato,

É pôr um homem demente.

 

Uns dizem que cento e trinta

Contos — outros, mil e tantos;

Que isto se afirme ou desminta

Enche o coração de espantos.

 

Esperta logo o desejo

De não dar mais que um cruzado,

Ou perder de todo o pejo

E ir a um milhão quadrado.

 

Que, assim como nós quadramos

As léguas, quadrar podemos

O dinheiro que pagamos,

Jamais o que recebemos.

 

Explico-me: a vereança

Paga tarde e paga em dobro,

Porque o credor, quando cansa,

Não põe aos ímpetos cobro.

 

Mas para que o miserável

Contribuinte não gema,

Faz-se-lhe grata e afável;

Não é assim, minha Gemma?

 

Não põe aumento na taxa,

Mormente se é baratinha;

A taxa quanto mais baixa

Parece mais bonitinha.

 

Desta maneira a fazenda

Municipal, acusada,

Não de torva, nem de horrenda,

Mas só de desbarrigada,

 

Perde inteiramente o resto

Da pele que traz nos ossos;

Fica-lhe o corpo mais lesto,

Já sem casca, só caroços.

 

Então é que é ver o ufano

E gracioso esqueleto

(Falemos italiano)

Dançar o seu minuetto.

 

Dançar não paga comida,

Nem vestido, nem calçado,

Mas alegra um tanto a vida,

E o gozo é tão pouco usado!

 

O pior é se, na faina

Do ofício, os vereadores

Arranjarem uma andaina

De caixas e borradores.

 

Pois não há maior desgraça,

Nem pior melancolia,

Do que ter ostras na praça

E a escrituração em dia.

 

Ao menos, tudo confuso

Faz crer que inda poderemos

Guardar um traste em bom uso...

E então, evoé! bailemos!

 

 

 

N.° 36

15 DE NOVEMBRO DE 1887.

 

 

Voilà, ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Ora, mal sabe a pessoa

Que lê estas linhas toscas,

Compostas assim à toa,

Entregues ao prelo e às moscas,

 

Mal sabe o susto que tive

Nas eleições da semana:

Vi Cartago, vi Ninive,

Vi além da Taprobana:

 

Por isso darei ao verso

Certo tom grave e pausado,

Diverso, muito diverso

Do meu tom acostumado,

 

E, se não, amigo, veja:

Batendo a hora do voto,

Vesti-me e fui para a igreja

Como um eleitor devoto.

 

Tinha comigo o diploma,

E a lista dos meus eleitos,

Fechada com boa goma,

Juntinha, agarrada aos peitos.

 

Começou pela chamada ...

Sei que sabe que ainda estamos

Nesta usança desusada

De só votar quem chamamos.

 

Dizia o mesário: — Antônio

Vaz de Souza, e repetia,

Depois: — Arlindo Theotônio

De Vasconcellos Faria.

 

E Arlindo, que era presente,

Levava o diploma aberto

Aos olhos do presidente,

Votava, e rápido, e certo,

 

Escrevia o nome: — Arlindo

Theotônio de Vasconcellos

Faria. — Trabalho findo,

Ia ao bife e ao Carcavelhos.

 

Mas o curioso, o incrível,

O trágico, o inopinado,

O que parece impossível

E entanto foi praticado,

 

É que entre os nomes dos vivos

Tinha nomes de defuntos,

De tantos que ora, entre os divos,

Gozam o descanso juntos.

 

E não defuntos de agora,

Mas de alguns anos passados,

Alguns que a pátria inda chora,

Outros pouco ou mal chorados.

 

Essa chamada de mortos

Trouxe-me um sono profundo,

Fui sentindo os olhos tortos,

E o mundo ao pé do outro mundo.

 

Primeiro vi Duque-Estrada

Teixeira — chegar sombrio

Para acudir à chamada

Feita no seu pátrio Rio.

 

Vi depois o Azevedo

Peçanha, vi a figura

Do Buarque de Macedo,

Labor, honradez, cordura.

 

Vi outros muitos, vi tudo,

E, continuando o mistério,

Vi, com gesto carrancudo,

A história e o seu cemitério.

 

Numerar os esqueletos

Que entrar vi na sacristia,

bolorentos ou pretos,                   

É obra que excede a um dia.

 

Vi César e mais as suas

Válidas tropas, vi Galba,

Maomé e as meias luas

E os três Curiácios de Alba.

 

Nino vi, Giges, e aquela

Semíramis, graça e fama,

Cleópatra, e a donzela

D'Orleans, Vasco da Gama,

 

Pedro o Grande, Henrique Oitavo,

Amílcar, os comerciantes

Cartagineses, Gandavo,

Napoleão e Cervantes.

 

E vinham todos trazendo

Uma cédula entre os ossos

Ao mesário, que ia lendo,

Os nomes desses destroços.

 

Sonho foi... Quando desperto,

Não achei mais que o sacrista,

A mesa vazia perto,

Nem mais eleitor nem lista,

 

Tonto do meu pesadelo,

Contei-o ao sacrista, e o moço

Facilitou-me entendê-lo,

Ambos à mesa do almoço:

 

— “Nada lhe aconteceria

Se a lista dos eleitores

Pudesse ter algum dia

Revisão e revisores.

 

“Se fosse oportunamente

Cada morto eliminado,

Nenhum seria presente                                           

E muito menos chamado.

 

“Mas, como a preguiça é grande

E os trabalhos são massudos...

E não há quem nisto mande...

E os tempos andam bicudos...

 

 

 

N.° 37

22 DE NOVEMBRO DE 1887

 

Voilà, ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Pessoas há... Por exemplo,

Que vale um desfalque triste

Cuja notícia contemplo?

Acho que já nem existe.

 

Pois, entrados os cobritos,

Desmancha-se a diferença,

E o que eram terríveis gritos

Chega a pura indiferença.

 

Pessoas há que detestam

Rimas daquele feitio;

São cadeias que molestam

A inspiração, mais o brio.

 

Eu cá sendo, necessário

Ir andando, vou andando;

Rimo Corsário e corsário,

E bando com contrabando,

 

Sem saber se o leitor gosta,

Ou não dessa rima rica.

Se eu quero a obra composta,

Menos que fazer me fica.

 

Se não sair boa a quadra,

Que saia, ao menos, completa;

Lá, se lhe quadra ou não quadra,

É queixar-se do poeta;

 

Não do triste gazeteiro,

Que rói o tempo e trabalha

Sem encontrar no tinteiro

Qualquer assunto que calha.

 

Ninguém me dirá que as notas

Falsas e germanizadas

Valem nunca um par de botas,

Novas ou acalcanhadas.

 

Pois que já tratara delas

O cronista do costume,

E ora são como panelas

A que não resta chorume.

 

Nem elas, nem os debates

Do Jockey-Club, e os palpites,

Nem os terríveis combates

De agudas encefalites.

 

De encefalites agudas,

Das quais não escrevo nada;

As rimas devem ser mudas,

Quando a matéria é pancada.

 

E brigar por dois cavalos,  

Gastar suor, sangue e murros,

Defendê-los, levantá-los,

Para um amador de burros,

 

É completa maluquice.

Eu amo os burros, capazes,

Sem ardor nem casquilhice,

Maduros desde rapazes.

 

Barulhos entre campistas?

Cadeira de Torres Homem?

São matérias de altas vistas,

Que aos fracos olhos se somem.

 

Sobretudo, em medicina,   

Basta-me um só documento,

Cousa séria, não mofina,    

Obra séria e de momento,

 

A autópsia de um tal Garrido,

Que foi achado enforcado,

Sem ficar bem definido

Se era ou não um suicidado.

 

Se sim ou se não — responde

O auto que é impossível

Achar por onde se sonde

Esse problema terrível.

 

Mas, continuando a pena

Naquele labor ingrato,  

De toda a descrita cena

Conclui que houve assassinato.

 

É por isso que os problemas

Nunca me meteram susto; 

São simples estratagemas

Que a gente desfaz sem custo.

 

Assim desfizesse o dano

E a funda melancolia

De não ser pernambucano!

Teria visto, de dia,

 

Vênus, o astro, no Recife,

Onde apareceu agora... 

Ah! tu rimas com patife,

Tu, Recife de má hora!

 

Lembra a notícia que Enéias,

Indo da troiana parte,

Viu assim a flor de idéias,

E assim a viu Bonaparte.

 

Foi o que li e acredito;

Que eu creio em tudo o que leio,

E como sigo um só rito

Só leio aquilo em que creio.

 

Faça o leitor outro tanto;

Se não crê nesta Gazeta

De Holanda, ponha-a num canto;

E rimará com Gazeta.

 

 

 

N.° 38

29 DE NOVEMBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Nascimento cura, cura,

Curandeiro Nascimento;

Curandeiro fura, fura,

Fura-vida e fura-vento;

 

Pois que tens a liberdade

De curar tantas mazelas

Que devastam a cidade,

Curar e viver por elas;

 

Tudo isso com quatro passes

De evocação de defuntos,

Que, sem que mostrem as faces,

Todos ali falam juntos;

 

Espíritos diferentes;

Um cura barriga da água,

Outro arranca um ou dois dentes,

Sem deixar sangue nem mágoa:

 

E mais que tudo, são grandes

Em ler, como as adivinhas,

Para o que, basta que mandes,

Com tais e tais palavrinhas;

 

Nascimento (apre! que custa

Desfiar um pensamento

Verso abaixo! Custa e assusta).

Dize-me cá, Nascimento,

 

Dize o que virá de Minas,

Se queijo, tabaco, ou lombo,

Se cousas mais superfinas,

Quem dá pulo e quem dá tombo.

 

Antes que tudo nos venha,

Veio muita porcaria,

Muita rixa e muita lenha,

Pulso de gente bravia.

 

Palavreada sem estilo...

Ao menos, se os escritores

Nos fizessem ler aquilo   

Com alguns poucos lavores,

 

Dariam à pobre gente

Que vive de outros negócios

Um recreio de patente

Para entreter os seus ócios.

 

Então, padecesse o Veiga,

Calmon, Santa Helena e o resto,

Para uma pessoa leiga

Era um gosto puro e honesto.

 

Lia em boa e sã linguagem

Que o vizinho era um modelo

De ignorância  e parolagem,

Um papagaio e um camelo.

 

E, vice-versa, diria

O vizinho assim tratado,

Que a maior patifaria

Tinha no outro o grão-mestrado.

 

Eram certamente afrontas,

Mas rendilhadas, cobertas

De corais e finas contas,

Menos que afrontas, ofertas.

 

Ah! mas justamente é isso

O que faria à polêmica

Perder o melhor feitiço,

E pô-la inválida e anêmica.

 

E por que tanto barulho?

Para ter lugar marcado

Na casa, que é nosso orgulho,

E a que chamamos senado.

 

Que vale a pena, isso vale!

Ponham-me ali já eleito

Pela serra ou pelo vale,

E verão se não aceito.

 

Aceito, fico e sustento,

Com alma, com heroísmo,

Esse forte monumento,

Flor do parlamentarismo.

 

Uma só condição, uma,

Para pleitear aquilo

Descompostura nenhuma,

Ou nenhuma, ou com estilo.

 

 

 

N.º 39

6 DE DEZEMBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Peguei da mais rica pena,

Molhei-a na melhor tinta,

E fiz uma cantilena:

“Tinta que repinta e pinta”.

 

Que haja nisso algum sentido,

Livre-me Deus de escrevê-lo;

Sentido, bem entendido,

No sentido de entendê-lo.

 

Mas que há nessa linha escura

Uma íntima harmonia

Com tudo o mais que se apura

De tantos casos do dia,

 

Isso é que não há negá-lo,

Exceto se uma pessoa

Quiser fazer de cavalo,

Assim, sem mais nada, à toa.

 

Pois não andou toda a gente

Com a imaginação acesa,

Em busca do presidente

Da República Francesa?

 

Havia apostas. Um era

Ferry, outro — homem de espada,

Outro Freycinet quisera,

Outro — Floquet, outro — nada.

 

E de tanta gente oposta

Sai um que a ninguém havia

Feito cuidar em aposta,

Se seria ou não seria...

 

Já sei... Não me explique, amigo;

Não seja de uns desfrutáveis

Que juram sempre consigo

Explicar os explicáveis.

 

Por exemplo, não me explique

O Ney, nem a delicada

Ação que faz com que fique

Toda a idade pasmada.

 

Essa jóia, esses quinhentos

Mil réis dados de pronto,

Como quem espalha aos ventos

Palavras leves de um conto,

 

Ação foi de grande siso;

Ter-se entre duas pilhérias

Ney, o marechal do riso,

Consolador de misérias.

 

E muitos pasmados ficam,

Por não crer que alguém possua

Cobres que se multiplicam   

E os lance estéreis à rua.

 

Depois disto vem aquilo

Que a nenhum de nós consola,

Nem deixa a ninguém tranqüilo,

Nem traz figura de esmola.

 

Refiro-me às ameaças

Da Amazônia, que deseja,

Resguardar as suas graças

Do nosso amor, salvo seja.

 

Tudo porque há um sujeito,

Cardoso, ou cousa que o valha,

Que, não sei por que respeito,

Na tarefa em que trabalha,

 

Brigou com outra pessoa,

E os dois, que podiam juntos

Fazer muito cousa boa,

Em variados assuntos,

 

Agora não fazem nada;

Pregam-me até esta peça

De pôr a quadra acabada

Pendente da que começa.

 

 

Depois, daquilo, aquil'outro,

Expressão que ficaria,

Não rimando (e mal) com potro,

Sozinha, sem companhia.

 

Aquil’outro é a abundância

De roubos eclesiásticos,

Feitos com a petulância

Dos grandes dedos elásticos.

 

Sacrílegas limpaduras

Da casa de Deus — dos ouros,

Das pratas sacras e puras...

Naturalmente, só mouros.

 

Mouros — sejam da Mourama,

Ou mouros da Cristandade,

Que os há de uma e de outra rama

Por toda essa humanidade.

 

Não foram seguramente

Os capoeiras da rua

Que matam e francamente

Pela forte gente sua.

 

Adeus, versos duros, frouxos,

Sem inspiração nem graça,  

Obra destes dias coxos,

Furtados e sem chalaça.

 

Por isso peguei da pena,

Por isso a molhei na tinta,

E fiz esta cantilena:

“Tinta que repinta e pinta!”

 

 

 

N.° 40

14 DE DEZEMBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Por Júpiter! Cobre o rosto.

Risonha Hélade amiga,    

Cobre-o de pejo e desgosto;

Chora a tua graça antiga.

 

Lembras-te daqueles tempos,

— Da galante mocidade,

Em que eram teus passatempos

Grave e fina agilidade?

 

Em que as tuas formas belas

Mostravam-se aos olhos puros,

Tempos quase sem mazelas,

Quase sem dias escuros?

 

Então floresciam jogos

De toda casta e destino,

E coros cheios de rogos

Ao céu e ao povo divino.

 

não falo dos famosos

Jogos de corridas — quando

Voavam carros briosos

Pelo solo venerando.

 

Falo (e serve ao que ora trato)

Falo daquelas usanças

Em que vinha o pugilato

Entre cantigas e danças.

 

Seguramente que havia

Pancada — porém pancada

De valor e bizarria

Por uma cousa sagrada.

 

Eram modos e maneiras

De lutar de língua e punho,

Traziam tantas canseiras,

Grécia, o teu amável cunho.

 

E agora, ai, chora pitanga!

Pitanga é fruta moderna,

Mas a qualquer mágoa ou zanga

Qualquer fruta é fruta eterna.

 

Contudo, se não te agrada,

Chora aquele mel do Himeto,

Que inda agora a abelha amada

Verte ao comum e ao seleto.

 

Chora o que for, chora, chora...

Vês este grego, chamado

Manuel Rottas, que aqui mora?

Foi há pouco encarcerado.

 

Que pensas tu que fazia

Este filho tão malandro,

Em cujas veias podia

Correr sangue de Lisandro?

 

Ouve... fecha os olhos... Cobre

O belo rosto, faceira;

Não há cautela que sobre...

Rotas era capoeira.

 

Sim, capoeira, repito.

E cometia na praça

Das Marinhas o delito

De dar aos colegas caça.

 

Chamavam-lhe por gracejo

O grego das ostras, nome

Que em si mesmo não dá pejo,

Antes creio que dá fome.

 

Grego e capoeira! Ó manes

Dos seus avós acabados!

Ó recordações inanes

De outros tempos e outros lados!

 

Bem conheço que, assim como

Cada roca tem seu fuso,

Cada macieira seu pomo,

Tem cada terra seu uso.

 

Nem é o uso que me espanta

Espanta-me esse contraste

Da terra e da sua planta,

Da habitação e do traste.

 

Bem sei que a Grécia recente

É outra da Grécia antiga,

Mas no coração da gente

És a mesma, Hélade amiga.

 

E por mais que a razão pura

Mostres que ora estás mudada,

Espanta-me esta figura:

Rasteira, grego e facada.

 

 

 

N.° 41

20 DE DEZEMBRO DE 1887.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Nos quoque gens sumus, digo

Sem nenhum acanhamento;

Se é moda, eu a moda sigo;

Se é vento, acompanho o vento.

 

Não somente ao literato

Cabe descobrir mistérios;

Eu sou curioso nato,

Tão sério como os mais sérios.

 

Et quoque cavalgare

Sabemus, como ia expondo;

Lá se acaso errar, errare

Humanum est, respondo.

 

Eu, — não é porque me gabe,

Mas acho que o elogio

De um tio muito mais cabe

Na boca do próprio tio.

 

Esperar que outras pessoas

Descubram seus pensamentos

E cantem honrosas loas

Aos nossos merecimentos,

 

Palavra que me parece

Negócio muito arriscado; 

Este cala, aquele esquece,

Nada fica publicado.

 

Vamos ao caso. Há dois dias

Recebi este bilhete

Do meu amigo Mathias,

Residente no Catete:

 

“Pois que já fomos colegas,

Manda-me a razão bastante  

Por que se diz: “ o degas”.

Não corri à minha estante,

 

Corri à pena e ao tinteiro,

Porque trazia comigo

O histórico verdadeiro

Do que me pede este amigo.

 

E aqui lhe conto, — deixando

Que riam maus e praguentos:

Ouço o riso e vou andando

Cá com os meus bolorentos.

 

Ora bem, ninguém ignora,

(Menos que ninguém, Mathias)

Que houve um grande Egas outrora,

Varão de alias bizarrias.

 

Afonso, meio enteado,

De um tal Peres, se encastela

Em Guimarães já cercado

Pelas forças de Castela;

 

Vai então Egas, pensando

Em livrar o rei, caminha

Para o castelhano infando

E segreda-lhe ao que vinha.

 

Vinha prometer que o moço

Afonso obedeceria,

Sem mais sangue nem destroço.

Castela creu no que ouvia

 

Mas logo que os castelhanos

Daquele sítio abalaram,

Afonso e os seus lusitanos

Entregar-se recusaram.

 

Que faz o grão Egas? Vendo

Que faltara ao prometido,

Faz sacrifício horrendo,

Ele, pai, ele, marido.

 

Vai com a família, e dá-se

Ao inimigo. Ação única!

Outra não há que a ultrapasse,

Ou esta fé, ou fé púnica.

 

Tempos vindos, tempos idos,

Entrou no povo esta fala,

Quando alguém os ofendidos

Brios punha em grande gala:

 

“Cá o Dom Egas não há de

Deixar de cumprir a jura”.

Depois a celeridade

Do tempo, que tudo apura,

 

Foi diminuindo o adágio,

Perdeu-se o jura primeiro

E foi crescendo o naufrágio

Do primeiro ao derradeiro.

 

Já no século passado

Ia em tais e tantas penas

Que ficou — do que era usado,

o Dom Egas” — apenas.

 

Mas o Dom tanto se escreve

Na forma acima apontada,

Como por outra mais breve,

Um D, um ponto e mais nada.

 

Daí resultou que o povo,

Lendo, como lê, às cegas,

Faz um dito inda mais novo

E ficou só: — “Cá o degas”.

 

 

 

N.° 42

28 DE DEZEMBRO DE 1877.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Eu cá, quando toda a gente

Chora ou treme de assustada,

Tenho um desejo veemente

De dar uma gargalhada.

 

E a razão, — se há razão nisto,

Não é senão porque é útil

Fazer deste mundo um misto

De terrífico e de fútil.

 

Outrora o teatro dava,

Ao riso afrouxando a rédea,

Depois de uma peça brava,

Uma farsa, uma comédia.

 

Acabado o Aristodemo,

Vinha uma ária do Martinho;

Ao fel que chorava o demo,

Ao fel que sucedia o vinho.

 

Eu não, eu misturo tudo,

De modo que cada grito,

Angustioso ou sanhudo,

Não nos traga um faniquito.

 

Ou então uso o contrário;

Quando é geral alegria

Solto o verbo funerário

E misturo a noite e o dia.

 

Para não irmos mais longe,

Ninguém dirá que passamos

Uma existência de monge,

Que rezamos, que choramos.

 

Antes vejo anunciados

Bailes de vários feitios,

Teatros abarrotados

De cristãos e de gentios.

 

Malgrado o sol e a poeira,

Corridas de bons cavalos;

Toda uma cidade inteira

Brincando sem intervalos.

 

Pois é justamente agora

Que eu, por integrar a vida,

Deito a vista para fora,

Desordenada, insofrida.

 

E, ao ver do lado do norte

Aquele pobre diabo

Que encontrou comprida morte

Onde torce a porca o rabo;

 

Que foi com rara presteza,

Agarrado, arrebatado,

E com toda a ira acesa,

Crucificado e esfolado;

 

Vingando a sorte, vingando

Aquela porca mesquinha

Que, em suas roças entrando,

Foi morta e não foi rainha;

 

E, ao lado do sul, a dama

Que à preta engolir fazia,

Não garoupa sem escama,

Nem doce, nem malvasia;

 

Mas comidas singulares,

Não feitas por encomenda,

E a beber com tais manjares

Vinho de outra pipa horrenda;

 

E se a boca recusava

O petisco enjoativo,

Tição aceso lhe dava

Novo e forte aperitivo;

 

Sem contar a bordoada,

Que as rijas carnes alanha,

E era a música obrigada

Daquela ceiata estranha;

 

Às pressas trago estas duras

Histórias com que tempero

As folias e aventuras,

E ato ao jovial o fero,

 

Para que, quando tomarmos

No Pascoal alguma cousa,

Ou algum colar mirarmos

Na loja do V. de Souza.

 

Digamos: — P’ra lá, menina,

Menina in-oitavo, in-fólio,

Dá cá tua mão divina

Ao teu amador Malvólio.

 

 

 

N.º 43

3 DE JANEIRO DE 1888.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Deus lhes dê muitos bons dias,

Deus lhes dê muitos bons anos,

Lençóis para as noites frias,

Para as de calor, abanos.

 

Se é certo que os novos planos

Melhoram as loterias,

Convém evitar enganos,

Devaneios e utopias.

 

Exemplo: as áreas vazias

Estão dos tais soberanos

Com que se pagam folias,

Prazeres e desenganos.

 

Logo os ímpetos insanos

De curar academias

Com os tais calomelanos

Das modernas francesias,

 

São custosas fantasias

Para a arte e seus arcanos;

Mil vezes as ferrovias

E os carros americanos.

 

Façamos com que dois manos,

Saindo às ave-marias

De Ubá ou Curitibanos,

Vão almoçar a Caxias.

 

Mas gastar novas quantias,

Para ter alguns maganos

Que pintem quatro Marias

E as bodas de dois ciganos;

 

Ou meia dúzia de ulanos

Entre bélicas porfias,

Ou revoltas de oceanos...

Sou seu criado Mathias!

 

Lá para ver agonias

De um mártir, de dois tiranos,

Conheço melhores vias:

É ler casos mexicanos.

 

Se os Zeferinos ufanos

Podem ser seguros guias

Digam lá os paduanos;

Não sou dessas freguesias.

 

São talvez cerrancerias,     

Chamam-me a flor dos marcianos,

Cá vou pelas simpatias

Cá dos meus paroquianos.

 

Neste tempo de pianos,

Lembra-me ainda as poesias

Em que falavam Albanos

Com as pastoras Armias.

 

Então quando as minhas tias,

Casadas com dois baianos,

Tinham as peles macias,

Inda sem rugas nem panos;

 

E nos meses marianos,

Cantavam as melodias,

Que os nossos peitos humanos

Enchem de melancolias;

 

Enquanto duras harpias

Com a guerra dos Cabanos,

Tiravam sangue às bacias,

Além de outros muitos danos;

 

E as velhas tinham bichanos,

Que eram as suas manias,

E os primos Salustianos

Iam às alcomanias;

 

Então as mesmas teorias

Tinha a arte e seus fulanos:

Tudo o que agora copias

Copiaram veteranos.

 

E os fulanos e sicranos,

Batizados noutras pias,

Podiam ser Ticianos,

Sem novas filosofias.

 

Concluo que as velharias,

Como os tabacos havanos,

Podem trazer alegrias

A nós, como aos turcomanos.

 

Que mais? Bahias? Tucanos?

São rimas de melodias...

Deus lhes dê muito bons anos,

Deus lhes dê muito bons dias.

 

 

 

N.° 44

18 DE JANEIRO DE 1888.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Para quem gosta de sangue...

Peço à leitora querida

Não desmaie nem se zangue;

Não venho arrancar-lhe a vida.

 

A gente pode, em conversa,

Dizer alguns nomes duros,

Não por índole perversa,

Nem maus costumes impuros.

 

Se achar algum dito horrendo,

Não desmaie nem se zangue...

Porém, como ia dizendo,

Para quem gosta de sangue,

 

Houve-o em Moura, S. Fidélis,

Grajaú, Piracicaba;

Esfriam muitas peles

Na própria grave Uberaba.

 

Ali, fogueira queimando,

Muito antes de Santo Antônio,

Cará de gosto execrando

Para a boca do demônio.

 

Mais longe, uma catequese;

Mais perto, uns tiros trocados...

Quem souber rezar que reze

Por alma de tais finados.

 

Eu, de todas essas cenas

Que acaso coincidiram,

E que outras melhores penas,

Em prosa, já referiram,

 

Confesso que a de Uberaba

Vale mais que outra nenhuma;

Tem luz que se não acaba,

Ensina e conforta, em suma.

 

Note-se que lá não houve

Sangue propriamente dito,

Omissão que é bom se louve

Em vista de outro conflito.

 

E por quê? Porque um Sampaio

Que, pelo nome não perca,

Para copiar o raio,

Que voa, mas não alterca,

 

Logo que viu a gente armada

Vociferando nas ruas,

Disposta, pronta, assentando

A ir a cenas mais cruas,

 

Bradar que ou lhe tiraria,

Sem compaixão a existência,

Ou ele a favorecia

Nada mais que com a ausência,

 

Ele, coronel e cabo

De partido, achou cabido

Não afrontar o diabo

Na gente do outro partido.

 

Saiu; logo a gente amiga

Para trazê-lo de novo,

Cuidou de uma vasta liga

E andou ajuntando povo.

 

De modo que, se lá volta,

Havia provavelmente

Nova e sangrenta revolta,

Em que morreria gente.

 

Poupou-se uma cena crua;

Sampaio ficou de fora.

Tem casa ali, casa sua;

Morava; já lá não mora.

 

Porém onde a luz do caso?

Que há aí que conforte e ensine?

Escute, ou vai tudo raso,

Depois de escutar, opine.

 

A luz é que tem Sampaio,

Com a maior segurança,

Nas mãos um futuro ensaio

De desforra e de vingança.

 

Ponha-se de lá à espreita

De ocasião valiosa,

E vá com a sua seita

Contra o Borges, contra a Rosa,

 

Contra o Marques e os capangas

Ponha-os fora da cidade,

E entre vivas e charangas

Fique em paz e em liberdade.

 

Virá dia em que eles troquem

As bolas contra Sampaio,

E a toque de caixa o toquem

Nas asas de novo raio.

 

Fuja então; de novo espreite,

E a murro e a tiro os disperse,

Tranqüilamente se deite

E alegremente converse.

 

E assim, aumentando a soma

Das proscrições alternadas,

Uberaba será Roma,

Ambas imortalizadas.

 

Ora Mário, agora Sila,

Um de dentro, outro de fora,

Ante-fila ou serra-fila,

Ora Sila, Mário agora.

 

E não haverá na vida,

Na vida em que tudo acaba,

Cousa mais apetecida

Que ir viver para Uberaba.

 

 

 

N.° 45

4 DE FEVEREIRO DE 1888.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Não, senhor, por mais que possa

Achar censura, confesso

Que não tenho medo à troça,

Referindo este sucesso.

 

Há muito que me pejava

Da botoeira que tenho,

Cava, inteiramente cava;

Sem qualquer sinal de engenho.

 

De serviço ou caridade,

Cousa que haja merecido

A particularidade

De me fazer distinguido.

 

Não é que imitar quisesse

O José Telha, que corre

Por fita que não merece,

E se lh'a não derem, morre.

 

Não quis hábito da Rosa,

Cristo nem Pedro Primeiro,

Avis ou mesmo a famosa

Fita do grave Cruzeiro.

 

São moedas da coroa,

E eu, democrata, não devo

Expor a minha pessoa

A ser contrária ao que escrevo.

 

Mas então, de que maneira

Preencheria o vazio

Desta minha botoeira

Sem diminuir o brio?

 

O que desde logo acode

É por uma flor bonita,

Ou Rosa ou cravo, que pode

Suprir muito bem a fita.

 

Porém, dês que a alma nossa

Tem casaca e bem talhada,

Preciso é fita que possa

Encher-lhe a casa sem nada.

 

Mas que fita? em que armarinho

Recente podia havê-la?

Encontrei logo o caminho:

Corri a Venezuela.

 

Venezuela tem uma

Ordem muito bem disposta,

Com que premiar costuma,

Costuma, procura e gosta.

 

Tem grã-cruzes, tem comenda,

Tem dignitárias e o resto.

Há para todas as prendas

Um sinal brilhante e honesto.

 

Ordem é mui bem fundada

Sobre a liberdade amiga,

Grave como a Anunciada,

Como o Banho, como a Liga.

 

Simão Bolívar se chama,

Grande nome e livre nome;

Coroou-o eterna fama

Do louro que se não some.

 

A venera é justamente

Como são outras veneras,

Usa-se ao colo pendente,

Ao peito, em forma de esferas.

 

A fita é de chamalote,

Como são as outras fitas,

Não é certo que desbote

E tem as cores bonitas.

 

Quanto ao efeito no rosto

Da multidão é perfeito;

Dá o mesmo grande gosto

E o mesmíssimo despeito.

 

Corri a Venezuela,

Venezuela escutou-me,

Pude logo convencê-la,

Ouviu-me, condecorou-me.

 

Não é só a monarquia

Que tem plantas reverendas;

Vento da democracia

Também faz brotar comendas.

 

 

 

N.° 46

10 DE FEVERE1RO DE 1888.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

 

Eu, acionista do Banco

Do Brasil, que nunca saio,

Que nunca daqui me arranco,

Inda que me caia um raio,

 

Para saber como passa

O Banco em sua saúde,

Se alguma cousa o ameaça,

Se ganha ou perde em virtude.

 

Li (confesso) alegremente,

Li com estas minhas vistas,

O anúncio do presidente

Convocando os acionistas.

 

Para quê? Para o debate

Do reformado estatuto,

Obra em que há de haver combate,

Que traz gozo, que traz luto.

 

Pois nesse anúncio, à maneira

De censura, escreve o homem

Que é já esta a vez terceira

Que chama e que eles se somem.

 

Minto: sumiram-se duas.

Não tem culpa o anunciante,

Se há necessidades cruas

Do metro e de consoante.

 

Pela vez terceira os chama,

E agora é definitivo,

Muitos que fiquem na cama,

Um só punhado é preciso.

 

Mas eu pergunto, e comigo

Perguntam muitos colegas,

Que, indo pelo vezo antigo,

Não vão certamente às cegas;

 

— O acionista de um banco,

Só por ser triste acionista,

É algum escravo branco?

Não tem foro que lhe assista?

 

Não pode comer quieto

O seu costumado almoço,

Debaixo do próprio teto,

Velho já, maduro ou moço?

 

Barriga cheia, não pode

Dormitar o seu bocado,

Para que o não incomode

O que tiver almoçado?

 

Pois então a liberdade

Que tem toda a outra gente

Cidadã, meu Deus, não há de

Tê-la esta pobre inocente?

 

É certo que os diretores

Do Banco são reduzidos

A quatro, e que outros senhores

Vão a menos: suprimidos.

 

Em tal caso, é razão boa

Para que, firmes, valentes,

Compareçam em pessoas

Diretores e gerentes.

 

Res vestra agitur. Justo.

Mas que temos nós com isto?

Para que me metam susto

Só outra cousa, está visto.

 

Sim, o que algum susto mete,

Transtorna, escurece, arrasa,

Não é que eles sejam sete

Ou quatro os chefes da casa.

 

Sejam sete ou quatro, ou nove,

Disponham disto ou daquilo,

É cousa que me não move,

Posso digerir tranqüilo.

 

Porquanto, digo, em havendo

Nas unhas dos pagadores

Um bonito dividendo,

Que nos importam divisores.

 

Tenham estes cara longa,

Cabelo amarelo ou preto,

Nasceram em Covadonga,

Em Tânger, em Orvieto;

 

Usem de barbas postiças,

Ou naturais, ou nenhumas;

Creiam em sermões, em missas,

Ou na sibila de Cumas;

 

Para mim é tudo mestre,

Contanto que haja, certinho,

No fim de cada semestre

O meu dividendozinho.

 

 

 

N.° 47

16 DE FEVEREIRO DE 1888.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Talvez o leitor não visse,

Entre editais publicados,

Uma boa gulodice?

Abra esses beiços amados.

 

Vamos, não tenha vergonha,

Estenda agora a lingüinha,

Para que esta mão lhe ponha

Sobre ela esta cocadinha.

 

Disse nesse documento

A câmara que é vedado

Usar o divertimento

Entrudo, como é chamado.

 

Impôs as palavras duras

Do parágrafo e artigo

Do código de posturas,

Código já meio antigo.

 

A mim disse que a pessoa

Que outras pessoas molhasse,

Fosse a água má ou boa

Que das seringas jorrasse,

 

Incorreria na multa

De uns tantos mil-réis taxados,

E não ficaria inulta,

Se os não desse ali contados.

 

Porque iria nesse caso

Pagar suas tropelias

Na cadeia, por um prazo

De (no mínimo) dois dias.

 

E as laranjas, que se achassem

Na rua ou na estrada à venda,

Mandava que se quebrassem,

Como execrável fazenda.

 

Laranja, bem entendido,

Laranja, própria de entrudo,

Um globo de cera, enchido

Com água... às vezes, com tudo.

 

Ora, se o leitor compara

A exemplar compostura

Do povo (exemplar e rara)

Com o dizer da postura;

 

Se adverte que uma só pinga

De água não caiu na gente,

Que não houve uma seringa

Para acudir a um doente;

 

Que o belo colo das damas

Não viu o gesto brejeiro

De apagar-lhe internas chamas

Quebrando um limão de cheiro;

 

Conclui logo que a cidade

Obedece, antes de tudo,

A si (porque a edilidade

É ela) e deixou o entrudo.

 

Porém eu, que vi, em todos

Os anos, isto na imprensa,

Já desde o tempo dos godos

(João, com tua licença!);

 

E que, apesar de postura,

Vi seringas respeitáveis

De água cheirosa e água pura,

Terríveis e inopináveis;

 

Crioulas e molequinhos

Carregando em tabuleiros

Prontinhos e arrumadinhos

Infindos limões de cheiro;

 

Eu diversamente opino,

E digo que a lei se engana,

Se cuida ter no destino

Alguma ação soberana.

 

Recorda a mosca pousada

Na carroça, diz a fama,

Que, ao vê-la desatolada,

Cuidou tirá-la da lama.

 

Não, amiga lei. O entrudo

Desapareceu um dia

Entre calções de veludo,

Carnavalesca folia.

 

Reapareceu mais tarde;

Vingou por bastantes anos,

Com estrondo, com alarde,

Triunfos grandes e ufanos.

 

Chega a polícia de novo

E desterra o velho entrudo;

Troca de brinquedo o povo,

Fica somente veludo.

 

Mas quando houverem passado

O tempo e a policia, a ponta 

Da orelha do desterrado

Entre bisnagas aponta.

 

E porque  legem habemus,

Seja branda ou seja dura,

Anualmente veremos 

A mesma inútil postura.

 

 

 

N.° 48

24 DE FEVEREIRO DE 1888.

 

Voilà ce que l'on dit de moi

Dans la Gazette de Hollande.

 

Juro-lhe, meu caro amigo

Leitor, pelo que há sagrado,

Que eu, que a triste regra sigo

De viver apoquentado;

 

Que suporto as sanguessugas

Humanas e desumanas,

Que não ganhei estas rugas

Em redes e tranquitanas;

 

Que aturo todo o importuno,

Que me refere a maneira

Por que o demo de um gatuno

Lhe foi levando a carteira;

 

Ou me conta tudo, tudo

(Mas tudo!) o que há padecido,

Para que, após longo estudo,

Ver que foi indeferido;

 

Que com ânimo quieto,

Leio, depois de almoçado,

Tudo o que sobre o arquiteto

Magalhães se há publicado;

 

Juro-lhe, leitor, repito,

Que cometer não quisera

O mais pequeno delito

Que este mundo haver pudera.

 

Furtar um par de galinhas,

Dizer algum nome feio,

Chegar mesmo às facadinhas,

Dar dois cachações e meio.

 

Não porque a moral condene

Tais atos; condena, é certo,

De um modo grave e solene,

Determinativo e aberto;

 

Nem também porque, somadas

As contas, mais ganha a gente

Passando as horas caladas

No belo sono inocente.

 

Não, senhor; outra é a causa,

É outra, uma certa lista,

Que é preciso ler com pausa,

Mente clara e clara vista.

 

Do rol dos processos digo

Que ao tribunal dos jurados

Foram, para seu castigo, 

Inda agora apresentados.

 

Que traz esse rol? Descubro

Entre outros muitos nomes

Que em oitenta e seis, outubro,

Foi preso um Antônio Gomes.

 

Pronunciado em janeiro

De oitenta e sete, entra agora

No julgamento primeiro

Do que fez em tão má hora!

 

Mais três, um Afonso Rosa,

Um Coelho, uma tal Francisca

Xavier, trempe graciosa,

Ao parecer, pouco arisca.

 

Visto que foi agarrada

Logo em março, dezessete,

Em março pronunciada,

Em março de oitenta e sete!

 

Há também na lista um certo

Francisco Peres Soares,

Já em abril descoberto

E mandado a tomar ares;

 

O qual logo em maio teve

Pronúncia do seu delito;

Fez um ferimento leve,    

Foi preso ao som de um apito.

 

Ora, com franqueza, vale,

Ser criminoso em tal era?

Uma peça de percale

Paga tão comprida espera?

 

Um tabefe, uma rasteira,

Mesmo uma canivetada,

Pagou de alguma maneira

A espera desesperada;

 

Portanto, e vistos os autos,

Dou de conselho prudência,

E digo aos homens incautos

Que inda o melhor é a inocência.

 

 

 

FIM